Julio Bezerra*
“Publicar é como morrer, escrever é mais como viver – constantemente em movimento, dançando na beira do abismo”, diz Yukihiko Oumi, poeta e fotógrafo japonês, em uma conversa a pé com Hanna Visser, nossa protagonista, uma escritora brasileira às voltas com um bloqueio, uma aparente separação e a fotogênica capital nipônica. Ela consente, mas sua resposta só vem mesmo na forma de narração, tempos depois, no que parece ser uma frase de seu novo livro: “o abismo é muito maior se não mergulhamos nele”. Esse diálogo fragmentado, entrecortado por idas e vindas, do Japão ao Rio de Janeiro, ao balanço dos oceanos que separam e unem as personagens femininas, dá conta, parece-me, da lógica interna (temática e formal) desse belo filme de estreia.
Djin Sganzerla, atriz premiada, com os dois pés no teatro, já havia trabalhado com diretores renomados, como Carlos Reichenbach, Júlio Bressane, e seus pais, Helena Ignez e Rogério Sganzerla. Em Mulher Oceano, ela estreia na direção cinematográfica jogando nas onze, como produtora, roteirista e atriz. Seu filme, curiosamente, sereno e um tanto plástico, não lembra em quase nada a obra de seus pais, e expressa uma personalidade diversa. Nele, Djin vive Hanna e Anna. A primeira mudou-se não faz muito tempo para Tóquio com o marido, embora esteja vivendo sem ele, deambulando pela cidade. A segunda vive no Rio, é funcionária de um banco de investimentos, praticante de travessia oceânica e se prepara para atravessar a nado 35 km do Leme ao Pontal da Barra.
Um momento casual catalisa a conexão oceânica entre as protagonistas. Hanna é tomada pela imagem de Anna nadando e saindo das águas do mar. Ela vira quase que uma refém dessa imagem, sobre a qual o filme, aliás, jamais se esforça de fato no sentido de esclarecer se se trata de uma memória ou de uma história do novo livro de Hanna. As protagonistas não se espelham exatamente, e, embora nunca tenhamos certeza de que se tratam de pessoas distintas, tampouco me parecem faces de uma mesma mulher. Talvez a noção de duplo não caiba bem por aqui. Hanna e Anna estão mais para formas de dar corpo a um certo estar feminino no mundo. Elas não sabem bem o querem, mas sabem o que não querem. O mistério do filme é o delas. É o processo de encontrarem o protagonismo de suas próprias vidas – sem a necessidade de coadjuvantes.
O oceano exprime esse esforço sereno de compreensão e autodescoberta da figura feminina e acaba por revelar não somente a força subliminar e invisível da natureza da qual fazemos parte, como também essa espécie de privilégio ao processo, ao meio do caminho. Djin imprime ao seu filme um certo “impulso oceânico”, onde tudo é pego entre a emersão e a imersão. Essa é a logica que contamina também a própria montagem do longa, que nos faz seguir por uma continuação um tanto errante, favorecendo a elisão, a digressão e um tempo mais poroso.
Um certo desequilíbrio entre essas histórias, a sensação de que o drama de Hanna talvez seja mais intenso (visualmente, inclusive, já que é evidente o desejo de explorar o apelo visual de Tóquio em seus aspectos mais famosos e usuais) faz o filme se desenrolar em altos e baixos – o que poderia ser inicialmente visto como
um problema, embora esse movimento tortuoso e desigual se apresente, por linhas tortas, como mais uma forma de nos colarmos ao balanço do mar.
As personagens nos aparecem quase sempre atadas a uma sensação, à vivência de uma experiência que nos parece ao mesmo tempo interdita e íntima. Mulher Oceano nos faz um convite curioso, o de sentir a qualidade sensual das imagens e de viver um certo ritmo e tom, de acompanhar as flutuações emocionais de Hanna e Anna, deixando-nos muitas vezes em um estado de suspensão. É uma espécie de sentido do não conclusivo ou resolvido que faz as vezes de argamassa da coisa toda – o que, se por um lado, mantém a lógica do filme de pé, por outro, cobra um preço, imprimindo uma impressão de inacabado.
*Júlio Bezerra integrou o Júri Abraccine