Entre os dias 1º e 9 de junho, aconteceu a 11ª edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba. Após o evento acontecer dois anos seguidos em formato online devido à pandemia de Covid-19, a realização em 2022 voltou a ser presencial em Curitiba.
A Abraccine manteve sua parceria com o Olhar de Cinema para a entrega do Prêmio do Júri Abraccine. Nesta edição, nosso júri foi formado pelos críticos Rafael Carvalho, Flávia Guerra e Letícia Magalhães. Saiba mais sobre a premiação aqui.
Confira a seguir o dossiê com textos produzidos por associadas e associados da Abraccine sobre filmes exibidos no 11º Olhar de Cinema.
Confira também em nosso site a crítica de Rafael Carvalho sobre o filme “Freda” e o ensaio de Letícia Magalhães sobre os documentários exibidos no festival.
Boa leitura!
Alan

“Figuras do underground sempre pareceram fascinar os diretores Daniel e Diego Lisboa, menos como simples objetos de análise e mais como polos de atração que, de alguma forma, engajam uma proximidade com os realizadores. ‘Alan’ é um grande exemplar desse tipo de relação que se estabelece entre cineastas e seu ‘personagem’ porque o próprio filme se desenha a partir desse encontro que guarda muito de uma cumplicidade e amizade entre eles, embora seja evidente que estejam em polos sociais distintos.”
Por Rafael Carvalho
“O documentário brilha a cada vez que o protagonista assume o controle. O jovem inicia uma conversa amigável, e no meio das frases, algumas delas se estendem, começam a rimar, dando origem a um rap freestyle, longuíssimo, de conceitos elaborados e vocabulário rico, empregando metáforas e associações de ideia muito potentes. É surpreendente descobrir, ao final de cada tirada, que o texto não estava pronto e decorado. Alan representa uma manifestação cultural inata, nada polida ou trabalhada. Seu talento era bruto e áspero, como o próprio rapaz.”
Por Bruno Carmelo
Céu Aberto

“‘Céu Aberto’ se dedica a um projeto de fôlego: acompanhar durante seis anos a vida de Andriele Soares, adolescente prestes a entrar na fase adulta. Enquanto ela amadurece, o Brasil se transforma. (…) A diretora Elisa Pessoa volta a sua câmera à menina da campanha, com sonhos de ser maquiadora, ou talvez ter seu próprio espaço nas fazendas da pequena cidade onde vive, no interior do Rio Grande do Sul. É interessante que a protagonista não possua alguma característica excepcional que justifique o foco: a autora parece privilegiá-la justamente pela capacidade de representar tantas garotas em situação semelhante. Andriele oferece um exemplo possível de ser mulher, do campo e jovem no Brasil atual.”
Por Bruno Carmelo
“Andriele é real, palpável, feita de carne, osso e sonhos. A comparação com ‘Boyhood’ (2014) — este infernal experimento filmado ao longo de 12 anos — é inevitável, mas ‘Céu Aberto’ tem suas vantagens: não-linear, mas nunca confuso, é um filme particular sobre milhões de meninas brasileiras.”
Por Letícia Magalhães
Esta Casa

“Esta produção experimental parte de uma história verídica: aos quatorze anos, uma garota foi encontrada morta. Após exames dos médicos, descobre-se que foi vítima de um violento estupro, escondido dos familiares. Os responsáveis nunca foram encontrados. Este seria material perfeito para os documentários policiais da Netflix, apostando na transformação do sofrimento alheio em entretenimento para as massas. O episódio também poderia servir de denúncia política, com linguagem urgente e inconformada, apontando dedos contra o descaso do sistema. No entanto, a diretora Miryam Charles segue um caminho diferente. Ao invés de privilegiar os fatos e a investigação criminal, fragmenta os pontos de vista e as possibilidades de leitura. Afeita ao cinema experimental, acredita numa mistura vertiginosa entre reconstituição em estúdio, encenação teatral, direção realista e delírios sugeridos pela narração etérea e as capturas de casas em ruínas, onde o crime poderia ter ocorrido. O tema é reinterpretado por inúmeras maneiras — ao invés de oferecer as respostas certas, Charles multiplica as perguntas.”
Por Bruno Carmelo
“Entre as duas histórias, e participando de ambas, uma cineasta em seu primeiro longa-metragem, em busca de um lugar onde tudo é possível, com quatro letras e uma série de questões a responder: casa. Com repetições cíclicas de trechos, como um trauma que sempre volta, Miryam Charles constrói uma narrativa experimental e envolvente.”
Por Letícia Magalhães
“‘Esta Casa’ é uma pancada que atordoa. A triangulação dos deslocamentos entre as nações em diáspora sobrepõe, une e mistura questionamentos que tangem a vida e a morte, seja de Terra, seja de outros corpos movidos de sua origem para ambientes desconhecidos.”
Por Yasmine Evaristo
Filme Particular

“Não dá para negar que Filme Particular possui uma estrutura, no mínimo, curiosa; em alguns casos, pode também soar até surpreendente não o dispositivo em si (a reprodução de uma tela de computador na imagem do filme, elaborada como um jogo de montagem e dedução que se forma diante dos nossos olhos), mas a maneira como ele se apresenta para nós. Por um lado, o filme é bem didático no seu início: dá conta de revelar como a diretora conseguiu comprar um carretel de um filme antigo em 16mm pela internet e de como ela pretende nos mostrar integralmente, de início, os 19 minutos dessas imagens, acompanhadas apenas por uma trilha musical que ela mesma sobrepôs ao filme. Depois disso, no entanto, não sabemos o que nos espera até que o real propósito venha à tona.”
Por Rafael Carvalho
“Trata-se de um esforço de resgatar e rediscutir algo que a História faz questão de esquecer. A proposta constitui um gesto de petulância, de provocação, exclusivamente através da linguagem cinematográfica. A autora lembra aquele único familiar de esquerda num núcleo burguês de direita, do tipo que relembra, nos jantares de família, os motivos escusos que levaram ao enriquecimento de todos. ‘O cinema político precisa mostrar aquilo que as pessoas não desejam ver. Todo o resto é propaganda’, poderíamos dizer, subvertendo o ditado original a respeito do jornalismo.”
Por Bruno Carmelo
“Em um filme montado como plano-sequência da tela de um computador — algo originalíssimo e com todas as possibilidades e problemas do mundo virtual -, [Janaína Nagata] faz uma busca sobre o contexto daquele filme particular. Nos resultados da pesquisa, um ‘passeio’ por um episódio terrível da história recente e uma crítica sutil às pessoas brancas que ainda acham que a África é nada mais que território para passar as férias.”
Por Letícia Magalhães
Freda

“A haitiana [Gessica Généus] narra a história de Freda (Néhémie Batien), protagonista que dá título ao filme, uma jovem que vive na periferia haitiana. (…) o filme não se atém apenas às tentativas de imaginar e vivenciar um futuro pensado pela juventude. Por ter seu centro na casa e mercearia da mãe da protagonista, todas as tentativas de um futuro melhor, a partir do desejo de cada um daquelas pessoas, está na mesa. Do mesmo modo que Freda crê na possibilidade de mudança por meio da educação, sua irmã projeta sua liberdade em relacionamentos amorosos. Já sua mãe se agarra à religião como meio de expurgar seus pecados passados e percorrer por uma nova estrada.”
Por Yasmine Evaristo
“No desenrolar do filme, Freda compreende o lado da mãe, aceita sua imperfeição e percebe que a mãe não queria uma filha para cuidar, mas sim alguém para dividir os fardos da vida — uma mãe que bem podia ser brasileira, numa família tão comum aos nossos olhos.”
Por Letícia Magalhães
“É sintomático que a autora eleja Freda como protagonista: trata-se da única estudante universitária, dedicada à antropologia, e munida de uma visão tão potente quanto realista da política. Ela acredita na necessidade de lutar, sem confundir o senso de justiça com o ímpeto de vingança contra seus algozes. O longa-metragem foge com habilidade tanto do justiçamento revanchista quanto do conformismo diante de situações de opressão, graças ao ponto de vista da jovem inconformada.”
Por Bruno Carmelo
Uma Noite Sem Saber Nada

“O longa indiano ‘Uma Noite sem Saber Nada’ [de Payal Kapadia] é um belo exemplar do que se pode chamar de filme de pretexto. Há uma trama ficcional criada a partir de um dispositivo muito conhecido no cinema de tom confessional (geralmente documentários, mas não apenas): a troca de cartas e mensagens entre duas pessoas que estão distantes. Pois aqui este é um esforço narrativo que serve para um outro propósito: documentar os movimentos estudantis contra os descasos políticos e certo espírito fascista e opressor que ronda as coisas na Índia da atualidade.”
Por Rafael Carvalho
“O contexto inclui manifestações contra a política do presidente Narendra Mondi e o encarecimento do custo de vida dos estudantes, protestos que ressoam com as mais recentes ocupações de escolas no Brasil, que também já foram assunto de cinema: no filme ‘Cabeça de Nego’ (2020), de Déo Cardoso. Se “Freda” mostra que a música está correta ao afirmar que ‘o Haiti é aqui’, este filme demonstra que temos muito mais em comum com a Índia do que normalmente imaginamos.”
Por Letícia Magalhães
“Para o espectador, esta pode parecer uma experiência árdua e hermética. O rosto que emite a voz feminina aparece apenas numa cena final, em breve passagem. Antes disso, permanece uma incógnita ao espectador. O destinatário também está ausente. Estes amantes e militantes são desprovidos de corpo e de protagonismo real: L. descreve uma luta política da qual não faz parte, somente testemunha de um lugar distante e melancólico. Já o rosto dos verdadeiros agentes do protesto contra o governo são escondidos pela escuridão.”
Por Bruno Carmelo
Pasajeras

“Este é um filme sobre mulheres fronteiriças. Vivendo entre Brasil e Paraguai, elas transitam todos os dias entre os dois países, cruzando a Ponte da Amizade de carro, ônibus, moto ou mesmo a pé. O destaque vai para Soledad, atravessadora de mercadorias e professora de dança. Outras mulheres também têm suas histórias contadas, como artesãs, feirantes, uma motorista de táxi e uma mototaxista.”
Por Letícia Magalhães
“A obra [de Fran Rebelatto] solicita ao espectador que creia no que diz, ao invés daquilo que mostra. Até onde o espectador saiba, estas mulheres poderiam ser engenheiras navais, astronautas, cozinheiras. Poderiam ser atrizes inseridas num registro de aparência documental, desempenhando o papel de ‘pessoas comuns que atravessam mercadoria’. Caso Alejandra, Soldad, Dirce, Nilda e suas colegas tenham desenvolvido macetes, manias e habilidades especiais nestas gerações de trabalho no mesmo ramo, nunca o saberemos. O longa-metragem gira em torno de um objeto invisível ao público.”
Por Bruno Carmelo
Paterno

“‘Paterno’ é um filme com cara de Brasil, para o bem e para o mal. Criado em 2013, filmado em 2017 e finalizado em pleno governo Bolsonaro, durante a pandemia de Covid-19, ele constitui uma excelente representação do instante em que vivemos, tanto pelas violências do sistema quanto pelo cansaço de um povo incapaz de reagir. Trata-se de uma obra sobre instituições exaustivas e exaustas que, no entanto, se reproduzem automaticamente assim como todos os frutos do capitalismo contemporâneo.”
Por Bruno Carmelo
“‘Paterno’ move-se em um movimento duplo: ao mesmo tempo em que lida com o debate social sobre o direito ao espaço urbano e os dilemas da moradia, em sentido mais amplo e social, também investiga, intimamente, as crises internas do seu protagonista, tão fechado em si mesmo que mal digere tais problemas. Entre o macro e o micro, ‘Paterno’ é um filme sobre heranças, sobre pais e filhos, sobre o legado que deixaremos para as próximas gerações, também sobre os meandros do poder e do jogo político, que se faz de modo escancarado ou de baixo dos tapetes.”
Por Rafael Carvalho
Rewind & Play

“Em 1969, o pianista e compositor de jazz Thelonious Monk finalizava uma turnê na Europa quando foi convidado a participar de um programa de televisão em Paris. ‘Rewind & Play’ é o registro das gravações desse programa, daquilo que foi salvo, ordenado como um desastre total, não por culpa do artista, mas antes pela inoperância da equipe do programa, em especial do apresentador que interage – ou assim ele tenta – com Monk, escancarando um total descompasso entre eles – entre um artista negro norte-americano e uma pretensa intelligentsia europeia/francesa. Trata-se de um filme de montagem por excelência. O cineasta franco-senegalês Alain Gomis, de posse desse material bruto, rearranja as imagens a fim de apresentar nuances que nunca seriam apontadas dentro de um programa televisivo. Na verdade, é do olhar que Gomis lança sobre o arquivo e das possibilidades de seu aproveitamento como matéria-prima do cinema que faz ‘Rewind & Play’ ser um estudo exemplar do poder discursivo da imagem e do som.”
Por Rafael Carvalho
“‘Rewind & Play’ não é um simples registro histórico e sim um movimento de Gomis compartilhando conosco os incômodos envolvidos naquela ocasião. Observem os sons, sejam musicais ou externos, e como um artista usa de sua arte para se desconectar da incômoda realidade.”
Por Yasmine Evaristo
Vai e Vem

“A produção em longa metragem acompanha a troca de vídeo-cartas das amigas Fernanda Pessoa e Chica Barbosa durante a pandemia, no ano de 2020. (…) O diálogo acontece como constantes desabafos e encontros íntimos de duas mentes que, antes de mais nada, se entendem e têm anseios parecidos. Anseios e duvidas, bem como ações e paralisações. As cineastas de ‘Vai e Vem’, Fernanda e Chiva, são mulheres com a mente e o corpo em polvorosa, questionando a sociedade e cultura enquanto corpos femininos latinos que vivenciam a subalternidade imposta pela prática colonialista.”
Por Yasmine Evaristo
“Fernanda Pessoa e Chica Barbosa relembram o público que estes obstáculos podem constituir um motor criativo e uma linguagem, ao invés de uma finalidade. As diretoras criaram uma obra com a pandemia, ao invés de sobre a pandemia. Felizmente, ambas possuem a noção de que os acontecimentos recentes dispensam explicações ao interlocutor. Sem a necessidade de contextualizá-los, podem ser pressentidos, evocados, transformados em metáfora e poesia.”
Por Bruno Carmelo
“Há um desejo explícito em fazer desse “experimento” uma investigação política sobre o estado de coisas da sociedade de cada país, marcados pelo fenômeno contemporâneo de ascensão dos governos de extrema-direita com suas posturas conservadores, apoiados por boa parte das respectivas sociedades que os elegeram. O filme se faz, também, como forma de olhar para esse quadro social de aparente normalidade que subsidia o horror de uma política grotesca e desumana. Entender minimamente o Brasil de Bolsonaro e os Estados Unidos de Trump parece ser a lógica – mais que compreensiva – que guia muitos dos filmes feitos nesses países nos últimos anos – mesmo quando o intuito não é exatamente esse. ‘Vai e Vem’ encara isso frontalmente, dentre tantas outras preocupações que rondam o pensamento e o fazer fílmico das realizadoras.”
Por Rafael Carvalho
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