por Humberto Silva*

O VERdeCINE – Festival Socioambiental de Filmes apresentou algumas constantes que eu gostaria de destacar neste balanço/fechamento.
Uma das coisas mais perceptíveis na curadoria foi a de selecionar filmes realizados em “caráter de urgência”. Uso essa expressão para me referir a filmes que num primeiro momento prescindem de acabamento formal, floreios estilizados que muitas vezes camuflam mensagem de fundo.
Mas que, justamente por que realizados em “regime de urgência”, revelam-se como registros, como alertas, como apelo para a necessidade de engajamento à causa ambiental. Sob esse aspecto, quanto mais improvisadas, mais carente de recursos, até mesmo descuidadas, para mim mais VERDADEIRAS as imagens que vi.
Assim sendo, esse o sentimento que me despertaram os curtas que seguem: “A Chuva do Caju”, dirigido por Alan Schvasberg, “Seu Adauto”, dirigido por Edvaldo Santos, e “Pensão Alimentícia”, dirigido por Silvana Beline.
No primeiro, um assunto que nem de longe “nosso cinema” se ateve com a importância que merece: as condições de sobrevivência de quilombos no “Brasil profundo”, com foco em um casal que sobrevive do que colhe e planta, sem vínculo com o mundo urbano.
No segundo, justamente, tendo como protagonista o seu Adauto, o choque com a urbanidade e os problemas que ela traz para quem adota um estilo de vida em sua contramão. Por óbvio, na eventual excentricidade do protagonista, uma forma de resistência que nos diz muito do quanto assuntos como liberdade e felicidade não se definem necessariamente conforme os ditames da “servidão voluntária” imposta pelo capital.
No terceiro, a jornada de uma mulher com entraves jurídicos com o ex-marido e que busca saída não convencional para alimentar duas filhas menores de idade. Nos desencontros pessoais da vida da protagonista, Sonia, as precárias condições de subsistência de grande parte das mulheres pobres no Brasil.
São três filmes de realização simples, muito simples. São plots extremamente condensados que de algum modo remetem ao Primeiro Cinema. Mas exatamente por isso, para mim, VERDADEIROS, pois no contrapé do Primeiro Cinema escapolem completamente ao sentido das Atrações.
Outra coisa bastante perceptiva na curadoria: selecionar filmes que se apresentam simbolicamente como cruzadas. A esse respeito, a seleção realça duas cruzadas para as quais me ative: a que tem por alvo o agrotóxico e a que se serve de alerta para o lixo produzido pela sociedade de consumo.
Sobre a cruzada contra o uso de agrotóxico, destaco “Terra que Alimenta”, dirigido por Junior Heitkoeter, e “Antes de Chegar na Sua Mesa, Passa Pelas Nossas Mãos”, dirigido por Erik Maximiano Oliveira. Nesses dois filmes, estilos de vida e trabalho com plantio e colheita de alimentos que resistem ao imperativo do agronegócio, que privilegia em decorrência o uso de agrotóxico. Nesses dois filmes se expõem de modo didático como plantar e colher tendo por finalidade uma alimentação saudável.
Vistos os filmes, o que me parece ser o desafio maior? Como, além de um festival como VERdeCINE fazer com que filmes assim circulem? A iniciativa do evento em si é da mais alta importância. Reconheço, contudo, que também é limitada.
Com isso, o que me parece crucial? Encontrar estratégias, além das limitações de um festival de cinema, que façam circular a mensagem. Ora, qual a enorme força persuasiva do slogan “AGRO é tech; AGRO é pop; AGRO é tudo”? Reconhecidamente de enorme alcance nacional. A realização do filme, sim, importantíssima. O filme, contudo, é condição necessária, mas não suficiente.
A “guerra” que opõe o AGRO e a agricultura sustentável para mim implica no assalto aos postos-chave dos meios de comunicação. Conjecturo, aqui, que um caminho possível para além de VERdeCINE é ver circular a mensagem de “Terra que Alimenta” numa rede social como o TikTok.
Outra cruzada é contra o lixo produzido pela sociedade de consumo. Destaco a esse respeito o filme “Águas Turvas”, dirigido por Kleber Leão e Gabriel Panazio. Nele, um pescador de uma antiga e tradicional colônia de pesca na Baía da Guanabara, impossibilitado de pescar em razão da poluição, encontra como alternativa de sobrevivência “pescar” o lixo jogado na Baía.
O filme expõe uma mensagem com um alerta e um conteúdo moral impactante. A degradação de uma comunidade histórica e a reinvenção de uma prática por um viés socialmente constrangedor. Um dado que faz de “Águas Turvas” um filme que funciona como manifesto: singularizar um personagem, tomado como exemplo. E assim concentrar nele, o senhor Zezinho, um problema bastante delicado.
O lixo que o senhor Zezinho “pesca” na Baía da Guanabara é de fato ilustrativo e reflexo de um problema mais amplo: o senhor Zezinho e o lixo “pescado” são variáveis que realçam com força desconcertante e constrangedora o choque entre o arcaico e o moderno. Esse choque, por sua vez, é inseparável do problema da educação em sentido institucional e cultural em sentido amplo.
De modo que, guardada em boa medida a singeleza constrangedora do filme, “Águas Turvas” é uma fagulha frente ao tamanho do problema. Como concebido e realizado, “Águas Turvas” é sensível no tratamento de um assunto, o problema do lixo em nossas águas.
Ocorre que, sem que se atente para o “insolúvel” problema da educação institucional e da formação cultural em sentido amplo, “Águas Turvas”, além de boas intenções, apenas roça o problema. Assisti-lo alheio ao problema da educação e da cultura e seu afeito praticamente não se faz sentir.
Invoco, então, da mesma forma que com “Terra que Alimenta”, “Águas Turvas”, além de VERdeCINE, encontre lugar no qual sua menagem circule como alerta para fins educativos, com propósito, pois de formação em escala ampla.
Uma nota de esclarecimento. Deliberadamente fiz uso repetitivo e em contextos diversos da palavra “problema”. Minha intenção é fazer ver como essa palavra, dependendo do modo como é usada ao mesmo tempo, diz muito e praticamente nada diante de “problemas” tão complexos em nossa sociedade. “Problemas” para os quais a arte cinematográfica exibe um tão necessário quanto fétido registro.
*Humberto Silva é associado à Abraccine e cobre o VERdeCINE a convite do festival.