Avaliações a respeito do 44º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

O 44º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro mereceu três avaliações distintas em nosso blog, através de pontos de vista detalhando segmentos específicos, e que, ao final, acabam encontrando evidentes pontos de contato entre si.

Vale também dizer que nossa assossiação conseguiu mais alguns avanços que prometem ser bastante significativos a partir de eventos importantes já no próximo ano, o que abrirá possibilidades de mais reconhecimento às nossas atividades nos festivais e mostras espalhados pelo país.

Luiz Zanin Oricchio e Ivonete Pinto (presidente e vice da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema) buscaram encontros importantes: “Diria”, diz Zanin “que avançamos bem. As conversas com os diretores de festivais (Wolney, do Ceará, e Nilson Rodrigues, Brasília) foram muito produtivas. Não apenas em termos da formatação dos júris da crítica para esses festivais, mas pela solicitação de seminários da crítica em ambos. Muito boa também a conversa com o Francisco César Fº, o popular Chiquinho, presidente do Fórum dos Festivais. Receptividade total: vamos trabalhar em conjunto e ele vai divulgar nossas propostas para os cerca de 60 festivais associados”.

Abaixo, as avaliações do festival.

Brasília 2011 – Um Balanço Geral

Por Luiz Zanin Oricchio

Como sabem aqueles que acompanharam a cobertura da imprensa, o Festival de Brasília deste ano sofreu várias modificações. Achei umas interessantes, outras nem tanto. Também o nível da competição e a “flexibilização” do ineditismo dos concorrentes foram alvos de críticas.

Vamos lá:

 1- Boa ideia a exibição simultânea dos competidores em algumas cidades-satélites. Nem todo mundo que mora em Brasília habita o Plano Piloto, onde fica o Cine Brasília, a tela do festival. É medida democrática, de governo popular, no melhor sentido do termo.

2- Boa também a unificação dos suportes digital e película. Brasília manter-se escravo do 35 mm não dava mais pé; era anacrônico demais, por mais que sejamos fãs do 35 mm (eu sou e o acho até agora insuperável, mas a fila anda, etc. )

3- Boa a promoção do seminário Novas Tendências do Cinema e do Audiovisual Brasileiros. Destacou-se em relação aos mornos seminários dos anos anteriores. Mas há umas observações a serem feitas. Como falar em “novas” tendências convocando apenas figurões e veteranos? Cadê a moçada? É preciso mesclar, e essa é chave da sabedoria, a meu ver. Jovem acha que só jovem deve palpitar; os mais velhos, os que já fizeram um percurso, acham que estão lhes invadindo a praia. É preciso colocar uns em contato com os outros para que da fricção nasça alguma coisa.

4- Bom também o destaque para o cinema de animação, que ganhou mostra própria. Mas, pelo nível apresentado, acho que as animações não mereciam premiação em separado

5- Aliás, o festival mostra gosto pela segmentação – o diretor, Nilson Rodrigues, vai propor para o ano que vem a separação entre documentário e ficção, um retrocesso nesse momento de desfronteirização entre gêneros. Além do mais, cabe lembrar que Brasília já premiou documentários competindo com ficções, mostrando que não é preciso “protegê-los” com uma mostra e premiação à parte. Santo Forte e Peões, ambos de Eduardo Coutinho, levaram o Candango principal em duas ocasiões.

6- A maior pisada de bola, a meu ver, foi a abolição do critério de ineditismo. Com melhor posição no calendário (antecipou a data de novembro para setembro/outubro), ótimo prêmio em dinheiro (R$ 250 mil para o melhor longa) e o prestígio de melhor e mais tradicional evento do gênero no País, Brasília não teria por que se sujeitar a exibir títulos que já passaram por outros festivais. É uma espécie de servidão voluntária, que só pode ser atribuída à vontade de agradar produtores e cineastas, em detrimento da credibilidade do festival.

7-  Ainda assim, e mesmo com a teoricamente maior oferta propiciada pela quebra do ineditismo, não fiquei convencido do acerto da comissão de seleção de longas-metragens. Achei legal a presença do vencedor, Hoje, de Tata Amaral, de Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra (apesar de seu não-ineditismo) e também de O Homem que não Dormia, de Edgard Navarro. Apesar do destrambelho deste último, como obra de realizador importante e sempre instigante foi bom que estivesse na mostra. Já As Hiper Mulheres me pareceu presença redundante, Meu País é apenas um filme comercial com boa promessa de diretor e o documentário Vou Rifar meu Coração não tinha nível para competir. Sempre é difícil julgar comissões de seleção porque nos atiram na cara que “escolhemos os melhores e você precisava ver os que ficaram de fora”. Como não sabemos quem são, temos de enfiar a viola no saco. No caso, e por casualidade os conheço, sei que foram preteridos Girimunho, de Helvécio Marins e Clarissa Campolina, e Histórias que só Existem Quando Lembradas, de Júlia Murat. Estivessem em Brasília, teriam elevado o nível e o interesse da competição.

8- Também não vejo motivo de satisfação para a seleção de curtas-metragens e de animações. Claro que sempre se podem destacar bons concorrentes, mas a média foi fraca. Entre os curtas que não conhecia, gostei de De Lá Prá CáO Elogio da GraçaSer Tão Cinzento (este é o meu favorito). Das animações, eu guardaria o já manjado Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo (que acabou vencendo) Moby Dick e Sambatown. É pouco.

9- Enfim, não gostei do cardápio geral. Eu sei que o trabalho de selecionar é difícil, eu mesmo já participei da comissão em Brasília e fui devidamente pichado. Ter o couro duro faz parte do jogo.

10- Por fim, a direção de Brasília precisa acertar-se com a moçada da cidade. Houve muita contestação, protestos, filmes retirados de competição, etc. Na minha opinião, tirar a Mostra Brasília do Cine Brasília é cutucar a onça com a vara curta. Os cineastas locais sentem-se desprestigiados e o festival também é deles. Não é só deles – e essa é uma questão difícil de ser tratada. Pela vocação universitária, por sua tradição de ter sido fundado por Paulo Emílio Salles Gomes em 1965, por sua politização, o Festival de Brasília é, ao mesmo tempo, local e nacional. Tem uma força danada na bagagem e não pode ser esvaziado por propostas imediatistas e submissas a lobbies. O Festival de Brasília é grande (e por isso cobramos tanto dele). Exige grandeza de quem o administra.

 O Brasil em Brasília

Por Ivonete Pinto

O 44º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em seus seis longas em competição, mostrou mais São Paulo do que outros estados. Vejamos os seis títulos na categoria longa-metragem e seus respectivos estados de produção: Hoje (São Paulo),  Meu País (São Paulo), O Homem que Não Dormia (Bahia), Vou Rifar Meu Coração (Rio de Janeiro), Trabalhar Cansa (São Paulo), As Hiper Mulheres (Rio de Janeiro/Pernambuco).

É preciso levar em conta, claro, que a produção nacional e a captação de recursos continuam centralizados no eixo Rio-São Paulo, mesmo havendo certo esforço dos editais em contemplar o “resto” do País.  A estrutura e os mecanismos de fomento fora deste eixo continuam precários, e embora possamos reconhecer os avanços em estados como  Rio Grande do Sul, Minhas Gerais, Distrito Federal e Bahia,  no âmbito do longa-metragem a quantidade de projetos destes estados ainda é pequena.

O festival, neste sentido, ficou em sintonia com a “proporcionalidade desproporcional” da produção, mas o fato é que o Brasil multirregionalizado, no longa-metragem,  esteve fora dessa categoria,  tendo ficado espelhado somente através das mostras Primeiros Filmes e Panorama Brasil, com títulos  do Paraná (01), Ceará (01), Brasília (4, se incluirmos Rock Brasília, de Vladimir Carvalho, que abriu o festival) e Rio de Janeiro (02).

Já as questões envolvendo o cinema brasileiro discutidas nos seminários e palestras ficaram centralizadas no grande tema “produção”, exceção para as falas de Vladimir Safatle e Ziraldo. O primeiro que ensaiou uma comparação com o cinema argentino tocando no aspecto temático e esbarrando apenas no aspecto estético. O segundo que apontou, com sua costumeira tenacidade, o real problema da falta de público do cinema brasileiro: a fragilidade do ensino básico, a falta de leitores, o excesso de analfabetos. As tendências estéticas e temáticas da produção nacional, a investigação sobre o porquê dos filmes brasileiros não terem a força que deveriam (política, estética, temática e de linguagem) não passaram pelas mesas dos seminários. Basta dar uma olhada no excelente caderno publicado com o resumo dos palestrantes para perceber o peso do assunto dos debates. O avanço das políticas públicas predominou enquanto preocupação geral, mas espera-se que para que no próximo ano este programa de seminários e palestras vá além do tema das verbas e da ocupação das salas.

Muitas análises sobre o festival já se detiveram nos avanços e retrocessos representados pelas mudanças implementadas nesta edição, por isso neste artigo a ideia é pensar nos filmes e, mais especificamente, no país revelado nestes filmes da categoria de longa-metragem.

Meu País

Insípido país

O Brasil, naturalmente, esteve presente em todos os filmes da competição de longas, de uma ou outra maneira, por meio de um ou outro olhar, até porque o país que emerge de São Paulo e Rio é feito de brasileiros, mas trata-se da velha minoria de sempre. Por paradoxal que seja, o único filme em que o Brasil está menos presente, porque propositalmente apagado, é naquele cujo título mais promete, Meu País, de André Ristum. O filme, que ainda contava com o fato de não ser inédito (concorreu em Paulínia), e o não-ineditismo foi uma aposta desesperada e equivocada de Brasília para conseguir filmes de qualidade, pôde ser revisto e seu maior problema confirmado. O Brasil ali está apagado, pois o que vemos é um recorte não representativo, que circunda os dilemas de uma família de alta classe paulistana. O pai (Paulo José) morre, o filho que há anos mora na Itália (Rodrigo Santoro) reaparece para resolver o maior conflito do enredo: como acolher a irmã bastarda, internada em uma instituição para pacientes com problemas mentais. A instituição, diga-se, foi sugerida por alguém durante o debate, como localizada na Suécia. Até aí não chega a ser uma contradição, pois se somos a Belíndia, a mistura de Bélgica com Índia, podemos ter pitadas de Suécia em algum aspecto.  O problema é o apagamento de uma realidade que torna o filme inodoro demais. Por exemplo, a família composta agora pelos três irmãos (Santoro, Cauã Reymond e Débora Falabella) está num casarão almoçando e jantando sem que apareça uma sombra sequer de empregados. As refeições vão parar na mesa como que por mágica (no debate, Ristum informou que havia cenas gravadas com empregados da casa, mas na montagem final eles saíram. Ou seja, uma decisão que assume e forja o apagamento de outras classes). Para completar, o bandido da trama, que vem cobrar dívida de jogo do personagem de Cauã, é italiano (Nicola Siri). Nem no quesito bandidos o filme consegue aproximar-se do Brasil.

Mas Brasília gostou destas opções arrojadas e deu cinco prêmios Candango  à produção, incluindo o de júri popular e prêmio de melhor ator a Rodrigo Santoro, para o personagem mais insípido de sua carreira. Desde justamente o Festival de Brasília de 2000, onde Santoro saiu premiado com Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bondanzky, que ele vem provando ser um bom ator. Talvez, fazer “cara de nada” para construir um personagem oco tenha sido sua melhor estratégia, porém isto significou por parte do júri ignorar o excelente trabalho de Marat Descartes em Trabalhar Cansa.

Trabalhar Cansa

Diabólico país

 

Nesse outro filme paulista, também exibido em Paulínia,  e assinado pela dupla Juliana Rojas e Marco Dutra, o Brasil recebe um tratamento que considera a classe média e a classe baixa já no miolo de seu enredo. O personagem de Descartes perde o emprego quando a esposa, vivida por Helena Albergaria, inicia um negócio: a abertura de um mercadinho. A tensão da perda do emprego e a impotência do marido frente à crise econômica instalada na família, mais os conflitos da esposa com os empregados, instaura um Brasil que prepondera em todas as cenas. E para enfatizar as crises, o filme insere um elemento de cinema fantástico, através de um animal (uma besta, um demônio) cimentado na parede do mercadinho. O misticismo somado às dificuldades de sobrevivência da classe média e da classe operária transformam Trabalhar Cansa num filme de terror.  O título, neste caso, também não parece encaixar-se no enredo. Sim, o filme trata de trabalho, mas de forma alguma a leveza dele corresponde ao que vemos na tela. O júri deu a Gilda Nomacce  o Candango de atriz coadjuvante, numa atuação merecida, mas ignorou a direção da dupla de estreantes, que exibiu domínio ao lidar com o forte realismo da mise-en-scène e a crescente atmosfera de terror.  Trazer elementos de gênero sem transformar o trabalho em filme de gênero é um mérito. O prêmio de melhor direção foi para André Ristum.

O prêmio de melhor filme coube a Hoje, de Tata Amaral, uma decisão acertada quando colocamos na balança erros e acertos de todos concorrentes. Hoje insere-se no grupo de filmes que pensa o Brasil a partir do período militar. Mas diferente da maioria destes, a história se passa em um dia de 1998, como o próprio título enfatiza, e se preocupa com os efeitos desse período no presente. Denise Fraga (premiada como melhor atriz) faz uma ex-militante, viúva de um guerrilheiro desaparecido durante a ditadura (o uruguaio César Troncoso). Ela ganha uma indenização e compra um apartamento com o dinheiro. Quer refazer a vida, mas o fantasma do companheiro insisteem assombrá-la. Um trunfo de Tata Amaral foi contar novamente com a participação de Jean-Claude Bernardet no roteiro, parceiro dos filmes anteriores. Bernardet faz a diferença no projeto, pois ele próprio foi perseguido pela ditadura (expulso da UNB em 1965) foi anistiado e recebeu indenização. Além dele, assinam o roteiro Rubens Rewald e Filipe Sholl, por sinal ganhadores do Candango de roteiro.

A diretora chegou a Brasília com um histórico de filmes importantes: Um Céu de Estrelas (1997), Através da Janela (2000) e Antônia (2006) e com reconhecido talento para filmar em espaços fechados, dando aos atores e ao desenho do som uma importância que salta na tela. Mesmo filmando entre quatro paredes, Tata Amaral, lançando mão de elementos da linguagem do cinema, constrói um país real, vivo com história. Neste caso, trata-se de um país com uma chaga a envolver toda a América Latina. E ela cumpre seu papel político de oferecer outras leituras, outros sentimentos sobre este período que muitos ignoram, e outros querem esquecer. A diretora, como parte do trabalho de elaboração de Hoje, dirigiu em 2009 Trago Comigo, minissérie de quatro capítulos para a TV Cultura, tendo como tema a repercussão da ditadura.

A destacar como outros prêmios de Hoje em Brasília, além do júri da crítica, o de melhor fotografia para Jacob Solitrenick, e direção de arte para Vera Hamburger, cujo trabalho conjunto cria camadas de realidade-irrealidade em projeções na parede.

As Hiper Mulheres

Premiado apenas com um Candango, o de melhor som para Mahajugi Kuikuro, Munai Kuikuro e Takumã Kuikuro, As Hiper Mulheres estampa um Brasil primitivo, aquele que ainda tem índios. E um país ainda civilizado, que tenta perpetuar antigos rituais através da imagem. Visto em Gramado, o documentário de Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro é exímio em informar sem recorrer à entrevista, em defender sem fazer tese. Graças às criativas soluções da direção e da montagem, As Hiper Mulheres consegue até desenvolver uma estrutura narrativa aristotélica, com direito ao clímax e à resolução, sem depender de manuais de roteiro. Acompanhamos com atenção o dilema de uma tribo do Alto Xingu que decide fazer o ritual das índias conhecidas como hiper mulheres e para isto precisa da única índia que ainda sabe cantar as antigas músicas. Ela está muito doente, o suspense cresce mais e eis que o final, belo e apoteótico, surge.

Vou Rifar Meu Coração

País da cornucópia

Outro documentário, Vou Rifar Meu Coração, restringiu-se às entrevistas e aos números musicais. Revela o universo da música popular denominada brega sem problematizar os depoimentos. Apresenta personagens que são verdadeiros achados, como as mulheres que dividem um mesmo esposo num país em que a poligamia é proibida e encarcera aquela que não é a esposa oficial na denominação de a “outra”. Filme inédito em Brasília causou muita especulação sobre a vinda ou não de um dos entrevistados, Lindomar Castilho. Ele acabou não aparecendo e a expectativa ficou em torno de como a diretora encararia seu personagem. Afinal, Lindomar Castilho foi o entrevistado que levou às últimas consequências a pregação das músicas bregas que falam em fazer tudo por amor, inclusive matar. Matou a cantora Helena de Grammond, por não aceitar a separação, foi condenado, pagou sua dívida com a justiça mas continua sendo assassino, já que a figura de ex-assassino não existe. Se a diretora tivesse conseguido arrancar dele uma elaboração para o seu ato teria sido um filme mais interessante e mais importante. Os outros cantores conhecidos, como Odair José, Wando e Agnaldo Timóteo, limitaram-se a defender a excelência da música brega e a tese de que Chico Buarque, com suas músicas românticas, só não é chamado de brega porque vem da zona sul do Rio de Janeiro. Talvez nunca tenham comparado as letras. De resto, o substrato deste documentário está mesmo nas canções que fazem a elegia da “dor de corno”. Triste país.

O Homem que Não Dormia

Aliás, o mesmo país de Edgar Navarro e seu O Homem que não Dormia. Para este filme, a expectativa estava no fato de que o diretor baiano havia apresentado com sucesso em Brasília seu longa anterior, Eu Me Lembro (2005). Basta o adjetivo “amarcordiano” para que possamos definir o primeiro filme de Navarro, e já de cara vislumbrar seus méritos. Em seu segundo longa, seria talvez injusto que o adjetivo pudesse ser “corneano”, mas O Homem que não Dormia apresenta o maior número da palavra “corno” por minuto que todo cinema brasileiro já produziu, incluindo as pornochanchadas. Um crítico baiano lembrou que na Bahia esta expressão está entranhada na cultura do povo, que desde menino usa-se este termo para qualquer coisa e que até os pais, quando querem chamar a atenção do filho pequeno dizem “venha cá seu corninho”. Seria preciso muitos estudos antropológicos para entender esta cultura, mas vá lá, dizem que é o Brasil. O problema no tão esperado novo Edgar Navarro nem está no excesso de “corno”.

E antes de levantar o que não funciona, cabe sugerir o que funciona, como a oralidade, certamente o maior atrativo do filme, e embora haja imagens belas, resultado de uma fotografia e de uma cenografia muito expressivas, as palavras são o que fazem a diferença. Rimbaud, Fernando Pessoa, Baudelaire e Guimarães Rosa contribuem na inspiração do roteiro. Na fala “Ele foi um descompreendido”, é um exemplo deste uso original e poético da língua.

O problema de O Homem que Não Dormia é que ele se dá aos soluços, realiza-se baseado em cenas isoladas, onde o todo não tem liga. Há uma grande dificuldade de entrarmos nos personagens que, quando começam a ser desenhados, desaparecem. O único personagem que funciona melhor é o do padre (Bertrand Duarte), possivelmente porque conseguimos enxergar a evolução de seu tormento e o acompanhamos no seu final catártico. Porém, coube a outro personagem coadjuvante, o louco vivido por Ramon Vane, o Candango pela interpretação.

A nudez ou a escatologia que abundam podem não se configurar como problema, mas a falta de uma costura para as histórias espasmódicas, a falta de relação entre os personagens são inegáveis. Navarro trabalhou, segundo ele próprio, 33 anos neste roteiro e mesmo tendo tido a contribuição técnica de Di Moretti como supervisor (doctor script) é difícil entrar na viagem de Navarro (mesmo para os baianos, onde houve uma sessão e o filme foi recebido friamente, conforme testemunhas). Cenas que são referência a outros diretores como Fellini, Buñuel e Mario Peixoto formam apenas um excesso de citações e são insuficientes para ajudar na necessária costura das situações dramáticas. Por exemplo, a cena dos dois cegos, um masturbando o outro num banco de praça, teria vindo diretamente de um trecho do livro Meu Último Suspiro (1982), de Luis Buñuel[1]. No livro, Buñuel admite que ficou impressionado, e a lembrança serve para que ele discorra sobre sua relação com os cegos. Já no filme a cena parece estar ali para chocar, tão somente. Se a intenção era outra, era a do diálogo com o surrealismo, a frivolidade e os devaneios de Buñuel, alguma coisa no tom parece ter dado errado. Em que pese a presença de situações, personagens e imagens gratuitas em Buñuel, na reunião de tudo isto o espanhol alcançava uma poesia única em seus filmes e queria de fato chocar, propósito rechaçado por Navarro, ao menos no debate em Brasília.

Suspeita-se que pelo uso de algumas características, Buñuel seja o diretor que encontre mais eco em Navarro, mas esta fonte referencial por si só não melhora o filme. Talvez por Navarro filmar desde os anos 70 e só agora ter conseguido fazer seu segundo longa, talvez por isto tenha colocado num único filme todas as referências e obsessões de uma vida. Uma vida, a julgar pelo filme, marcada por homens urinando, palavrões e mulheres-ornamento, cuja única função é dar motivo para que os homens passem a vida xingando-se de cornos. Que país é este?

[1] A frase exata de Buñuel: “Não gosto muito de cegos, como a maioria dos surdos. Um dia, na cidade do México, vi dois cegos sentados lado a lado. Um estava masturbando o outro. Fiquei impressionado com esse encontro”. (Buñuel, p.311)        

Sobre Curtas

Por Cid Nader

 

Havia uma certeza, pouco antes de seu início, de que o 44º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro seria alvo, já ali mesmo, de questionamentos sobre as mudanças adotadas de maneira drástica que praticamente revolucionaram/desfiguraram suas bases, e de quiproquós que inviabilizariam seu andamento. Muitos dos questionamentos lançados por nós da imprensa e da crítica antes do evento perderam força no inquirimento in loco: ou por constatações de que o festival estava, afinal, acontecendo, ou pelo fato de se ter tido tempo para ouvirmos as justificativas dos organizadores já cara a cara, com tempo e calma para ambos os lados tentarem com que a próxima edição conclua, por sua execução, se houve aprendizado com os equívocos, e se alguns atos adotados para esse realmente eram imprescindíveis.

Quanto aos quiproquós, os que ocorreram mesmo o foram por breves e incisivos discursos dos realizadores locais – a exceção ficou por conta do único ato mais concreto que se deu quando o diretor Adirley Queirós retirou seu primeiro longa-metragem (A Cidade É uma Só?) da programação, que o havia previsto para uma obscura sessão das 15h no Museu Nacional -, principalmente reclamando o espalhamento de seus trabalhos pelo período integral do evento, também colocados para fora do palco principal. Vários realizadores locais, quando tiveram a oportunidade de subir ao palco do Cine Brasília, pediram a volta da exibição de seus filmes (os curtas) aos moldes do modelo anterior, que se dava, anteriormente, na própria sala, e aglutinados nas tardes de sábado e domingo. A não ser por uma fala, não se tocou na eliminação da mostra dos filmes em 16mm em benefício das produções digitais, como havia sido muito reclamado também antes do início.

E, realmente – tanto para os de fora, quanto para os que trabalharam para tal – a quase impossibilidade de poder ter acompanhado minimamente as exibições do curtas locais surgiu como um equívoco da organização, bem na contra-mão de duas das possibilidades que festivas e mostras deveriam carregar como razões essenciais de existirem: as de que os trabalhos locais sejam vistos pela imprensa (que servirá como quem os repercutirá para além das fronteiras), e também pelos locais, em ambiente e horários apropriados para uma maior afluência. Infelizmente, ainda, festivais e mostras acabam sendo quase que os únicos momentos em que nossa extensa produção curtista pode ser apresentada.

Nesse quinhão do festival relativo aos curtas-metragens se deu uma das maiores confusões pré-evento. Sob suposições (emitidas por gente que participou da curadoria) de que a escolha dos curtas e animações para a mostra competitiva teria sido feita a toque de caixa, muitos questionamentos e cobranças foram lançados: artigos e discussões em lista de críticos ganharam volume, impondo dúvidas ao que resultaria de tal método “empurrado” à Comissão de Seleção. Falou-se em algumas centenas de inscrições que obrigaram os procedimentos de escolha serem feitos por apreciação somente de trechos iniciais dos curtas; de soma de pontos para a definição final superando a desejável avaliação brotada de apreciação da linguagem, de conceitos… A matemática insinuava que para dar tempo de cumprir metas, a maioria dos filmes pode ser visto por somente três minutos. Fato ou não, o resultado da curadoria, constatado em tela, lá na apreciação dos trabalhos na sala do Cine Brasília, não entregou algo de mais auspicioso, alentador ou realmente relevante para além de uns três ou quatro curtas, e no máximo duas animações.

Sem o parâmetro real da qualidade dos trabalhos do DF – somente alguns “ouvir dizer”, que não foram dos mais elogiosos -, chamou muito a atenção que a origem dos curtas apresentados na competitiva não era representativa dos locais que mais produzem obras nos últimos tempos: e não só em quantidade, mas pelas maneiras de fazer tal processo como algo que espelha esses movimentos específicos na busca de marcas e assinaturas particulares.

Sem querer botar na seara os filmes em si (que provavelmente foram analisados em diversos textos de coberturas de vários críticos), parece justo pensar nos resultados via o viés que remete aos locais produtores. Entre animações e filmes, com 24 trabalhos selecionados: cinco produções de São Paulo, local onde mais se produz; de Minas Gerais, local já há um certo tempo com produção constante, e de obras com forte tendência à experimentação ou busca na variação das linguagens, duas animações; do Rio de Janeiro, que já teve produção maior, e é de amplidão mais diversificada (tanto quanto em São Paulo) na forma, três; quatro do Rio Grande do Sul, que já foi um de nossos mais profícuos e criativos polos, estagnou numa repetição de modelo, e vem retomando bons trabalhos nos últimos dois anos; ainda três curtas do DF – que se servirem de exemplo para o restante produção que não pudemos acompanhar não são nada alentadores; uma animação do Pará; a Bahia, comparecendo com três trabalhos irregulares entre si (um estado sem tradição recente no formato, que parece estar querendo aparecer mais no cenário através de produções surgidas na escola, mas que ainda não convence); e três produções do Paraná, sendo que uma tremendamente boa.

Já se sabe que a qualidade apresentada nem poderia ser questionada quando se pensa que da cabeça de curadoria – quando não planejada para almejar unicidade temática, ou convergência de linguagem e buscas de caminhos mais provocadores/renovadores – saem opções de gosto “muito particular”, digamos. Mas com tantas inscrições feitas, no festival que é o mais mitológico do país, o resultado das opções remete a algumas dúvidas, essas sim, geradoras de questionamentos: afora a pequena justiça feita ao Paraná, que é uma das bolas da vez no universo curtista, com produção crescente nascida de vários núcleos difusores, onde ficaram os trabalhos de Pernambuco (em maior escala) e do Ceará, responsáveis nos últimos anos pela nossa maior riqueza “no setor” (e que neste ano têm ao menos cinco ou seis filmes imprescindíveis rodando por outros festivais)? E os da Paraíba dos muitos filmes produzidos, com profusão de obras (bastante variadas em estilo) nascidas quase todas de movimentos universitários? Por que, com tantos curtas de animação feitos por todo o Brasil, os escolhidos privilegiaram quase que somente os de traços simples (2D), sem nada mais ousado, num repetir de estilo (com desenhos muito parecidos) que aparentou ser de predileção de somente uma cabeça.

Tentando creditar muito à correria provocada pelas mudanças repentinas, ficam as dicas: que se possibilite mais visibilidade aos trabalhos do DF (até para que eles sejam apreciados e criticados – o que sempre tira do comodismo e provoca crescimento); e que haja muito mais critério na escolha dos curtas do resto do país, que deverão render escolhas mais justas a tudo de bom que é produzido por aqui.

2 comentários sobre “Avaliações a respeito do 44º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

  1. Queridos Zanin e Ivonete, vou fazer uma ressalva ao texto dos dois, com todo respeito que vocês me merecem pela seriedade com que sempre tiveram e tem como críticos. Ambos estão analisando a sério a qualidade dos filmes selecionados, esquecendo que tanto curtas como longas não foram selecionados com seriedade. Foi um erro pontual, sei que não se repetirá, mas vocês estão analisando como se elas tivessem sido sérias. Vou repetir o que disse no Cinequanon: as comissões tiveram uma semana para assistir mais de cem longas metragens (o que dá umas 150 horas de material) e a de curtas mais de 400 curtas, o que dá umas 90 horas. Como o dia só tem 24 horas e as pessoas precisam dormir pelo menos oito horas, façam as contas.
    Faço uma ressalva extra, Ivonete, quanto à questão da representatividade regional. Acho que ela não faz mais sentido na era digital. Com a facilidade e o barateamento dos equipamentos, só não faz filme quem não quer. Então, que vençam os melhores, nada de privilégios ou cotas regionais. Por mais que se façam mais filmes no eixo Rio-SP, a qualidade de filmes de gente como Petrus Cariri e o pessoal de Pernambuco reforçam minha tese.
    Abraços
    Marcelo Lyra

    Segue link para meu texto do Cinequanon, que sei que vcs leram, mas talvez alguns leitores não:
    http://www.cambury.edu.br/blog/fotografiaecinema/2011/09/12/artigo-filmes-sao-acessorios-para-os-festivais-de-cinema-por-marcelo-lyra/

    • Meu caro Marcelo, no meu texto fiz reparos às comissões de seleção de longas, curtas e animações. Não tenho detalhes sobre o trabalho de cada uma delas, mas como você parece se ater ao tempo dedicado à avaliação, sugiro que faça esse reparo por escrito e neste blog. Sei que você já escreveu outro texto a respeito e com ele concordo quanto ao aspecto fundamental para os festivais que têm as comissões de avaliação. Por outro lado, acho que, com a explosão do digital e (no caso de Brasília) a quebra da necessidade de ineditismo, será necessário estabelecer novas condições de trabalho para as ditas comissões. Fica aí o desafio e o convite. abs. Luiz Zanin

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