Polêmico/polêmica Elia Kazan

Elia Kazan

 

Ainda aproveitando a esteira da 35ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: uma das retrospectivas ocorridas nela trouxe à cidade a obra de Elia Kazan, com alguns filmes restaurados, outros não, mas com a vital importância de possibilitar a constatação em tela do trabalho de um autor dos principais na historia do cinema. Evento que causou júbilo na maioria dos que tiveram chance de ver ou rever seus filmes, mas que também trouxe à tona a discussão sobre um assunto polêmico que talvez o tenha marcado mais do que sua inquestionável qualidade como grande realizador: a sua ação como delator de colegas tido como comunistas, numa verdadeira guerra de caça às bruxas empreendida pelos inquisidores marcarthistas, em tempos de histeria provocada pelo início da Guerra Fria.

Surgido no Almanakito da Maria do Rosário Caetano e adotado também pela lista onde se comunicam todos os críticos associados à Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, o assunto ante a importância de alguém – por decorrência de sua arte ou por suas atitudes “mundanas” – ganhou um início que poderia render ampliação interessante a partir da participação de mais pessoas (mais críticos ou eventuais leitores), o que nos leva, nesse instante, a abri-lo aqui em nosso blog. Portanto, uma boa leitura inicial está lançada, tanto quanto as portas para que a questão ganhe mais opiniões.

On the Waterfront - Sindicato de Ladrões (1954)

 

Maria do Rosário Caetano (31/10/20110 – fonte: Almanakito)

Amo Inácio Araújo, leio tudo que ele escreve. Mas no Guia da Folha- Especial Mostra SP, no texto sobre a homenagem a Kazan, ele escreveu um parágrafo do qual discordo em gênero, número e grau.

Assunto: a delação (por Kazan) de colegas de ofício no Comitê de Atividades Anti-Americanas, comandado pelo Senador McCarthy, na primeira metade dos anos 50:

Transcrevo: “Terá sido (Kazan) um reles delator que entregou colegas na época da ‘caça às bruxas’ para se safar de uma condenação? Ou será o ex-comunista convicto que, de fato, acreditava necessário romper a lei do silêncio e liquidar o partido?”

Me causou o maior espanto ver Inácio, tão culto e politizado, sair com uma pergunta destas. Suponhamos que eu seja militante de um Partido X. Este partido está sob perseguição feroz. Estou, porém, desiludida com seus rumos (deste Partido). Me convocam para depor. Eu DELATO COLEGAS MILITANTES e me safo. É assim que se destroi um Partido? Não há formas menos torpes? Alguns dos colegas, vítimas da delação de Kazan, perderam empregos, tiveram carreiras arrasadas. Alguns, como Dalton Trumbo, assinaram roteiros sob pseudônimo, pois foram proscritos pela indústria do cinema. Kazan, como Celine, é um grande artista. Mas como cidadão cometeu ato abominável.

A Face in the Crowd - Um Rosto na Multidão (1957)

 

Sérgio Alpemdre (31/10/2011)

Olá a todos.

O que li foi que ele apenas confirmou dois nomes que já estavam numa lista. E que se ele não confirmasse nada iria mudar para esses dois nomes confirmados. Depois, publicou um anúncio no NY Times dizendo que havia tomado a decisão correta.

America America certamente não é dos melhores dele. Não está à altura de Clamor do Sexo, Rio Violento, Laços Humanos e Um Rosto na Multidão.

 

Boomerang! - O Justiceiro (1947)

 

Heitor Augusto (31/10/2011)

Entrando na discussão porque os filmes do Kazan me encantam, vou pegar rabeira no fim da mensagem do Sérgio sobre o anúncio do NYT no qual Kazan alega ter tomado a decisão certa.

Essa coisa da “decisão certa” ou “a que deve ser tomada” na perspectiva do Kazan me parece algo presente em muitos de seus filmes. O que o pai de Laços Humanos faz frente ao perigo de a filha sair do colégio? O que devia ser feito, ou seja, sacrificar-se (me seguro aqui para não estragar a surpresa de quem não viu ainda esse filmaço). E Brando em Sindicato de Ladrões? O mesmo. E a mulher desesperada de Um Rosto na Multidão? Faz “a coisa certa”. E o promotor de O Justiceiro? Idem.

O perrengue e o charme é que todas essas decisões “certas” (de novo, novamente ou na perspectiva do cineasta ou de seus personagens) têm impactos desastrosos. Pra mim, este é um dos encantos dos filmes de Kazan.

Splendor in the Grass - Clamor do Sexo (1961)

 

Maria do Rosário Caetano (01/11/20110 – fonte: Almanakito)

trecho de um leitor, enviado ao Almanakito:

Como ex-membro do Partido Comunista dos Estados Unidos, Elia Kazan denunciou colegas do antigo partido ao Comitê de Investigações de Atividades Anti-Americanas. Por este motivo, deixou de ser aplaudido por Ed Harris, Nick Nolte, Holly Hunter, Ian McKellen e Ed Begley Jr, durante a cerimônia em que recebeu um Oscar honorário pelo conjunto da obra.

Outros artistas, como Sean Penn (cujo pai foi vítima do macarthismo), Richard Dreyfuss e Rod Steiger foram a público declarar sua oposição à decisão da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.

Sobre seu testemunho no Comitê, Orson Welles teria dito: “Kazan trocou a alma por uma piscina”.

A Streetcar Named Desire - Uma Rua Chamada Desejo (1951)

 

Maria do Rosário Caetano (01/11/20110 – fonte: Almanakito)

“Elia Kazan (conversa com Inácio Araújo)- Sobre Elia Kazan:

Por Inácio Araújo”

Dear Ro, apenas como esclarecimento, a respeito do meu texto sobre Elia Kazan que você comentou:

– não disse que a delação dele foi bela ou fez com que se tornasse um bom cidadão, e sim que ele delatou convictamente, isto é: não só delatou como publicou um anúncio na primeira página do New York Times, se não estou enganado, para expor suas razões. Talvez isso não tenha ficado claro por causa do tamanho curto do texto (ou por minha causa, tanto faz), o certo é que quando ele faz Sindicato de Ladrões e bate na tecla da delação necessária para acabar com o gangsterismo ele está pensando, claro, no PC.

– Até onde sei, e posso estar enganado, dos nomes que ele entregou nenhum era inédito, nenhum deixou de escrever ou dirigir por causa dessa delação.

– Não emiti juízo sobre seu ato, a favor ou contra, apenas acredito, não tanto pelo anúncio publicado, mas por sua obra posterior, que ele de fato estava convicto do que fazia.

– Não emiti juízo, também, por não me sentir capaz de julgar os atos de pessoas submetidas à enorme pressão do Comitê na época.

 

Querido Inácio:

Sei o quanto este episódio é controverso e quantas paixões ele desperta. Quando a Academia de Cinema de Hollywood entregou Oscar honorário a Kazan, muitos protestaram e até saíram do auditório. Dia destes, ao comentar o documentário de Hermes Leal, Soldados a Caminho do Puteiro, na programação da Mostra SP, escrevi:

(…) E José Genoino poderia ter abordado tema espinhoso – sob tortura, teria entregado nomes de colegas. Uma coisa é ser delator (como o grande cineasta Elia Kazan ou o abominável Cabo Anselmo). Outra é falar sob tortura. A trajetória de Genoino mostra que continuou militando na esquerda. Mostra que todos souberam (inclusive os colegas do PC do B, partido  trocado pelo PT) que o que ele falou, sob tortura, não constituiu-se em razão para que fosse qualificado com o abominável nome de delator).

No caso de Kazan não houve tortura. Ele falou porque quis. Quantos, como ele, poderiam ter delatado colegas e não o fizeram? Quantos se negaram a depor junto ao Comitê de Atividades Anti-Americanas (comandado pelo radical de direita, Senador McCarthy)?

O que coloco em questão é uma parte de seu texto em que você dá a entender que é justo usar a DELAÇÃO para destruir um Partido (no caso o PC dos EUA, que sempre foi muito frágil!!!!!). Você chega a compará-lo ao Gangsterismo presente em Sindicato de Ladrões. Um partido que nunca chegou ao Poder, em nenhuma instância, seria uma instituição de Gangsters???

E para destruir esta instituição, o certo não seria usar formas democráticas????? Há tantas!!!

Creio que você julga o PC Norte-Americano (que, repito, sempre foi muito frágil) com os olhos de hoje. E como se ele governasse os EUA por 70 anos (como o PC soviético), e desde 1949 (como o PC Chinês). E mesmo que o PC dos EUA tivesse algum “gangster” político em seus quadros, a solução para sanar tal problema seria a Delação de gente da indústria do cinema que por ele tivesse simpatia????? Os 10 de Hollywood eram gangasters? Entre eles estavam nomes da grandeza de Dalton Trumbo.

Neste episódio, Elia Kazan (1909-2003) errou. Passados quase 50 anos, esta mancha o persegue. Mesmo que nosso tempo, de despolitização e esquecimento, não ligue para estes fatos, há quem (poucos eu sei) ainda o relembrem.

Rô Caetano.

Wild River - Rio Violento (1960)

 

Orlando Margarido (01/11/2011)

Queridos polemistas Rosário e Inácio, vejo boas faíscas aí para textos interessantes de defesa de pontos de vista. Ainda que não seja sobre o cinema, ou sobre o cinema de Kazan ‘per se’, mas com considerações a respeito de um filme do próprio, proponho que levem essa discussão para nosso blog da Abbracine. Isso quando o tumulto da Mostra passar. Acho que o caso Kazan corre muito paralelo ao cinema dele não?

The Sea of Grass - Mar Verde (1947)

Heitor Augusto (01/11/2011)

Na correria, ainda não terminei de elaborar a lista de sugestões de pautas de balanço da mostra para os companheiros que se candidatarem. Uma das minhas ideias aqui na lista é um texto avaliando Kazan.

Creio que não dê para falar dele sem passar pela delação — porque isso também está nas situações dos personagens. Só reafirmo que, pelo tamanho de seus filmes, não podemos apenas nos limitar a esse ponto.

 

 

America, America - Terra de Um Sonho Distante (1963)

 

Sérgio Alpendre (01/11/2011)

Discordo, honorável Heitor. É possível falar de um cinema tão rico em dramaturgia e mise-en-scène como o do Kazan sem passar pelo episódio da delação. A não ser que deixe de ser um texto crítico para se tornar um verdadeiro livro sobre ele, existem vários outros pontos a explorar em sua obra.

 

 

 

 

A Tree Grows in Brooklyn - Laços Humanos (1945)

 

Cid Nader (01/11/2011)

Chegando nessa conversa e relembrando somente os “Kazans” que vi pelo decorrer da vida. Só para concordar com o Alpendre, dizendo que a história está recheada de obras de artes (nos mais diversos níveis e de variadas origens), confeccionadas inclusive por crápulas – e não estou colocando o Kazan nesse metiê.

E vale lembrar que questões políticas foram analisadas de diversas maneiras – de acordo com o andar da carruagem, convicções de momento, mudanças das verdades que surgiam com o tempo – por toda a história humana. Creio que a obra deva resistir acima de tudo quando a discussão é sobre ela, não sobre o autor.

Viva Zapata! (1952)

 

João Nunes (01/11/2011)

Escrevo sabendo de cara que perco minha discussão com a Rosário por conta dos 40 anos da militância dela. Mas quero acrescentar uma pimenta na discussão.

Primeiro, concordo – e a Rosário deve concordar também – que obra e pessoas são coisas distintas. O Kazan tem a grande obra dele e ponto, independentemente de suas ações pessoais.

Em seguida, tendemos a ser duros com o Kazan, a despeito de uma posição pessoal dele clara. Ele denunciou comunistas. Era a posição dele ser contra comunistas. Na ex-União Soviética, muitos comunistas devem ter delatado “direitistas” e ficaram bem-vistos pelo regime. Aliás, regime tão abominável quanto as nossas ditaduras de direita. Claro, levo em conta o fato de que delação seja condenável, mas como disse o Inácio, como podemos ter juízo sobre o caso analisando-o tão friamente e tão distante dos fatos?

E isso me faz lembrar Simonal. O filme mostra como a esquerda se faz condescendente com ela mesma ao se eximir de culpa depois da derrocada de Simonal (e ele nem teve a chance de Kazan de receber Oscar honorário, pois morreu execrado; ok, a história do contador é terrível, mas as acusações políticas nunca foram comprovadas). Todos sem exceção (Jaguar, Ziraldo e outros) se justificam dizendo que aquele era um tempo de direita/esquerda, certo/errado, preto/branco, ame-o/deixe-o. Não quero crucificá-los, pois tampouco tenho condições de fazer juízo, mas o abrandamento com o qual aceitamos os argumentos deles é do tamanho da dureza com que tratamos Kazan.

Baby Doll - Boneca de Carne (1956)

 

Neusa Barbosa (01/11/2011)

Realmente, essa discussão sobre o Kazan não pode ser curta, nem leviana.

Me chamou a atenção especialmente o que disse o Scorsese no seu documentário, “Carta para Elia” – que ele fez suas maiores obras depois da delação; e que ficou especialmente visado justamente por ter escrito a carta na imprensa, dando seus motivos. Outros “colaboradores” da comissão McCarthy ficaram mais obscurecidos, não fizeram isso… Ele botou a cara pra bater.

Não que isto o absolva – a delação, a meu ver, é ato indigno. Ainda mais diante do que aconteceu a tantos cineastas, escritores, roteiristas, presos, e/ou privados de seu ganha-pão e dignidade, com vidas encurtadas por isso, na mesma época. Por que outros tomaram outro rumo, eram todos heróis? Claro que não. Kazan fez uma escolha, teve seus motivos, pagou um preço por isso, mas a mancha não sai da biografia.

Difícil, claro, ter uma ideia de todos os detalhes tanto tempo depois. Não estávamos lá, nossas avaliações são necessariamente parciais.

Mas a obra do Kazan continua grande. Ver seus filmes só reforça essa noção. Por isso, Scorsese também quis fazer “Carta para Elia”. Para contemplar a complexidade da vida, em toda a sua dubiedade, entre grandeza e vilania, coisas que Kazan coloca tão bem nos seus personagens…

 

Luiz Zanin (02/11/2011)

Alguém tem a carta que ele escreveu para o NYT? Deve ser um documento da maior importância.

East of Eden - Vidas Amargas (1955)

 

Heitor Augusto (02/11/2011)

Zanin e interessados, o anúncio do Kazan se posicionando no NYT pode ser consultado neste link: http://www.reelclassics.com/Directors/Kazan/kazan-article.htm. O texto foi publicado em 12 de abril de 1952.
Respondendo ao Cid e ao Sergio, meu ponto não é que um diretor de posições éticas e morais questionáveis não merece receber análise crítica que consiga separar filme e extra-filme. Não é isso o que afirmo — senão, deixaria de ver os méritos de O Nascimento de uma Nação porque seu diretor era pró-sul e, por consequência, escravocrata.

Minha questão é: a ideia de “fazer a coisa certa” ou “fazer o que deve ser feito”, que o Kazan deixa claro no anúncio do NYT ao dizer “Liberais devem se posicionar”, está refletida em muitos de seus filmes. E por isso que, para falar de muitos de seus filmes, acho necessário passar pela questão da delação, pois é uma das chaves de leitura.

À Neusinha, permita-me discordar de você e do que o Scorsese diz no maravilhoso “Carta para Elia”: não acho que Kazan fez suas maiores obras depois da delação, não. No meu gosto, O Justiceiro é muito melhor que Terra de um Sonho Distante; Laços Humanos é tão bom quanto Sindicato de Ladrões… Desde o começo seus filmes são bem bons.

E quero reforçar a sugestão do Orlando: vamos levar essa interessante discussão para o blog e fomentá-lo como espaço de discussão? Que tal um texto introduzindo aspectos de sua obra, seguido de comentários nossos em cima do que já discutimos aqui? Levemos para o blog da Abraccine esta saudável contenda!

 

Neusa Barbosa (02/11/2011)

Boa ideia, Heitor, vamos levar este debate pro nosso blog, tem pano pra mangas.

Só esclarecendo: não tenho certeza, não, de que ele fez os melhores filmes depois da delação, o Scorsese é quem pensa assim. Eu ainda não sei…

The Last Tycoon - O Último Magnata (1979)

 

Inácio Araújo (03/11/2011 – fonte Almanakito)

Rô, querida, acho que você, movida pela paixão como sempre, está atribuindo a mim idéias que são do Kazan.

Por exemplo: quem acha a delação lícita, quem a assume, é ele – não eu. Quem quer acabar com o PC é ele. Eu não tive nada a ver com isso. Apenas relatei o que acho que ele pensa. Não sou eu que vê no PC dos EUA, que nem conheço, algo análogo aos gângsteres do sindicato. É ele (ou então o filme não faz muito sentido).

Tudo que faço é não julgar o gesto do Kazan. Se estivesse naquela cerimônia de Oscar eu não estaria entre aqueles que o vaiaram, eu o aplaudiria, mas não por causa da delação. Não saberia julgar alguém que delatou nas circunstâncias em que isso aconteceu, onde não houve tortura, mas não foi tão simples assim.

Quanto a destruir o PC quem está falando isso é você. Não me deixe mal com meus amigos comunas, por favor. Beijos grandes, Inácio.

Orlando Margarido, você acha que sou maluco de ser “contender” frente à Rosário? Nem farpas, nada. Digo o seguinte: apenas explicitei, ou tentei explicitar, uma situação precisa, ou seja: a de alguém que, ao delatar, assume esse ato como necessário.

Não o defendi, e acho que, claro, não acredito que a delação seja uma maneira eficaz de liquidar o PC.

Aliás, quem mais entende de liquidar o PC é o próprio PC, não? Abraços gerais, Inácio.

The Arrangement - Movidos Pelo Ódio (1969)

 

João Batista de Andrade (08/11/2011 – fonte Almanakito)

Um anjo, desses bem protetores, vive me dizendo para não entrar em certas divididas…

Frequentemente desobedeço, para depois dar razão a Ele…

Essa questão Elia Kazan é de extrema delicadeza.

Fosse ele um cineasta de segunda categoria, esqueceríamos o assunto.

Mas não.

Só nesses dois meses devo ter assistido o Viva Zapata umas três vezes.

E vou dizer: sempre me emociono.

É um filme que eu gostaria de ter feito.

“Não viveu quem não viveu uma revolução”

Sou crítico apenas à composição do personagem do “intelectual” que primeiro insufla Emiliano para depois descartá-lo. Não sei se aqui sou “crítico” ou ” incomodado”.

Ali está a visão do Kazan.

A visão de que os projetos de transformação da sociedade são coisas de intelectuais interessados no poder, nada a ver com o povo ou a nação em que vivem. Assim, para bloquear esse projeto de poder, só destruindo os intelectuais que o abraçarem.

O filme é tocante, Zapata é um personagem que lembra nosso Lula, homem simples, profundamente enraizado entre seu povo. Lula, revelado (inclusive por mim num depoimento de 1972 para o “Hora da Notícia” ) logo se viu cercado de intelectuais de todos os matizes, dos mais porra-loucas até os mais maquiavélicos que sonharam com o poder na trilha do metalúrgico. Tudo isso Kazan colocou num personagem só. E a marca desse personagem é o oportunismo, a busca de poder.

Lula também era, a seu modo, anti-comunista, fez o que pode para arredar o PC de seu caminho e da liderança no movimento operário, claro, sem pecados perante a história.

Mas Lula se formou num movimento social mais sofisticado, urbano, em contato com idéias e lideranças (também anti-comunistas) mais modernas e pós-comunistas, principalmente da Igreja.

Ao contrário de Emiliano, Lula não se deixou aprisionar pelo “intelectual” que pretendia dirigir suas ações. Foi sábio, esperto, jogou com os intelectuais sem nunca transferir a eles o poder que era seu, de Lula, gestado em sua origem social e na luta operária. Os intelectuais que se colocassem em seu trajeto, não o contrário. Assim, conduziu sua carreira e o próprio país, a seu modo. Ao contrário de Emiliano, soube compor, até mesmo com as forças mais retrógradas da política brasileira, para conduzir sua política.

Vendo o carinho das pessoas com Lula, me vem à lembrança a emoção de um momento do filme de Kazan em que uma mulher do povo para diante dele, embevecida, – e acaricia o rosto de um maravilhoso Marlon Brando como quem acariciasse um mito que ao mesmo tempo seria seu filho, seu irmão.

Kazan, prisioneiro da simplificação (no caso desse intelectual), não podia mais ver saída para Zapata. Pois o próprio Zapata, desconfiado de seu pretenso orientador, não tem onde buscar forças para uma eventual “terceira via”.

Vejo, então, ali, naquele personagem, uma representação do gesto de Kazan: visto como perigoso e oportunista era preciso ser denunciado. Seria, então, preciso coragem para denunciar os intelectuais que aderissem ao comunismo. E essa coragem Elia Kazan teve e a expôs em sua carta.

Nesse gesto, Kazan não foi melhor do que qualquer funcionário público inflado pelo nacionalismo norte-americano e até mesmo propenso a romper suas próprias regras de democracia para destruir os que representam perigo para suas estabilidades e convicções. Como tantos fizeram ali e em qualquer parte do mundo.

Mas quem disse que um cineasta de talento, analisado pessoalmente, se revelará obrigatoriamente melhor do que outros cidadãos de atividades menos glorificantes do que o cinema?

Eu, como militante comunista desde estudante, cultivei minhas dúvidas e críticas, o que me fez ficar do lado dos companheiros que viam com desconforto o desvio absurdo do chamado “socialismo” da União Soviética. Mas isso custou, foi preciso viver a ditadura brasileira, principalmente nos anos 60, para saber o que é viver sob uma ditadura. E também visitar países “socialistas” como a DDR (Alemanha Oriental), para onde fui várias vezes participando do maior dos festivais de documentários do mundo ( que, como aqui, proibiu meu “Liberdade de Imprensa”, indicado ao Festival pelo Joris Ivens, em 1968).

Não posso esquecer de nenhuma das tantas barbaridades cometidas em nome de um suposto “comunismo” que minha geração de comunistas aprendeu a rejeitar.

O perigo de julgar Kazan é esse: o julgador se julgar, sob o peso de tantas culpas nas costas.

Mas não podemos correr o risco de confirmar a regra segundo a qual a História é a História contada pelos vitoriosos.

O “comunismo” soçobrou, caiu o império soviético e todas as denúncias de violência e massacres se confirmavam.

O “comunismo”, ao cair, passou o recibo aos seus inimigos.

Entre os inimigos, a direita norte-americana e os liberais de todo o mundo.

São tantas as verdades!

Hitler e Mussolini não eram comunistas, nasceram do ventre do capitalismo monopolista.

Os escravocratas mais violentos e racistas eram norte-americanos.

De fato, vivemos um século XX de grandes tragédias humanas e as ideologias não podem justificar tamanhos erros e barbárie.

E perdas.

Mas também tivemos nesse século a busca enlouquecida de explicações, de teorias, de caminhos, de tentativas.

E não há como negar: a esquerda e, dentro dela, os comunistas, carregaram essa bandeira de busca, de crítica, de reflexão.

Não se pode ocultar e destruir todo esse caudal de idéias e propostas sob o manto dos erros que foram tantos, mas de buscas. Pois entre os próprios comunistas é que surgiram as críticas mais coerentes e firmes contra os desvios terríveis.

Se para a direita reacionária bastava a denúncia, para a esquerda era preciso mais que isso: impedir que os erros servissem de arma contra as reformas, contra a justiça, contra a democracia, contra os avanços sociais, contra os direitos duramente conquistados em batalhas terríveis e sob repressões igualmente terríveis por parte da direita em toda parte do mundo.

Quanto a Elia Kazan, sou dos que não reduzem sua obra ao gesto pífio de quem denuncia colegas, como ele fez.

Seu gesto deve ser bem entendido e jamais esquecido: Kazan ali se colocou ao lado da violenta direita norte-americana que não temia só o poderio russo, mas temia fundamentalmente as idéias que compunham o pensamento comunista, pensamento que sempre impregnou os movimentos sociais com a capacidade crítica e o projeto de um mundo melhor para todos.

A obra de Kazan é genial. E ali, superando a própria fragilidade do autor, estão os signos a serem desvendados, as representações de nossos temores, esperanças, conflitos. Mesmo que o autor inocule em sua obra os equívocos de sua visão política, a obra tende a traí-lo, revelando os conflitos e as injustiças do mundo.

Elia Kazan, então, deixa para a história tanto o peso de sua traição quanto o valor imenso de sua obra genial.

Nossa coragem e nossa covardia.

The Visitors - Os Visitantes (1972)

 

Geraldo Veloso (08/11/2011 – fonte Almanakito)

Cara Rosário

Não sei se dou alguma espécie de contribuição sobre a”questão Elia Kazan” (polêmica que dura por muitas décadas, no universo da cinematografia, da ideologia e da história do século XX) mas aconselho a quem estiver com disposição para alinhavar algum tipo de juízo sobre a questão, ler meu artigo, que foi publicado no livro da, LUME, Os Filmes que Sonhamos, recém publicado.

Acho que a questão ideológica criou, em nosso universo reflexivo, uma série de parâmetros e limites de aproximação, dicotômicos e polares, que empobrecem demasiadamente a observação do cinema contemporâneo (e o século que o criou). Temos, hoje, elementos de distanciamento e possibilidades de tolerância que nos abrem um maior horizonte de reflexão a respeito do que somos (politicamente, historicamente, existencialmente) e do que o mundo pode ser.

Acho uma atitude primária, extemporânea e infantil (às vezes temos – alguns dos personagens citados teem razões fortes, inclusive familiares – razões fortes para manter a atitude de recusa a Elia Kazan, ainda nos dias que correm) em relação a este personagem. Recusar o papel formador de Kazan (uma de suas mais notáveis dimensões) das técnicas de interpretação que embasam o cinema contemporâneo. Não conheço nenhum ator contemporâneo que não deva um pouco (passando por Jack Nicholson, Robert De Niro, Dustin Hoffman, Al Pacino, Shirley MacLane, Lee Remick, Joane Woodward, Paul Newman, sem dizer James Dean, Marlon Brando, Montgomery Clift, e até Marylin Monroe, Karl Malden, Eva Marie Saint, Warren Beatty, John Malkovitch, et caterva) ao seu trabalho dos anos trinta em diante. E isso se refletiu numa dramaturgia que o cinema pratica até os dias atuais (acho até que, sobretudo, nos dias atuais). Sua influência (claro que não é isolada – seus parceiros como Lee Strasberg ou o trabalho de Welles, no Mercury Theatre) está impregnada no cinema contemporâneo. É claro que temos, no lado oposto, as ideias de Bertolt Brecht (que não gostava de cinema). Mas isto é outro papo.

As fraquezas humanas estão presentes em todas as nossas biografias. Quantas verdades históricas e ideológicas não têm sido traídas pelas nossas atitudes (e posturas) ao longo dos anos (muitas vezes isto não dura nem uma década, para estas “traições” se revelarem)? É só usarmos um pouquinho do exercício da memória para percebermos isto. Mas às vezes a memória é conveniente e muito fugaz. O século XX é permeado por traições convenientes no universo ideológico. Só estou com a “verdade” quando a circunstância me interessa. E somos muito arrogantes. A “verdade” passa pelos nossos filtros emocionais, pragmáticos e convenientes, entre outros dados. Revejam Kazan com olhos “etnográficos”. E sempre tenhamos em mente: “macaco, olhe o seu rabo”!

Pinky - O que a Carne Herda (1949)

 

Maria do Rosário Caetano (08/11/2011 – fonte Almankito)

Oi Geraldo Veloso:

Não se faz restrição ao Kazan cineasta, mas sim ao cidadão.

Achei  sua resposta muito relativista.

Você escreve: … muitas “verdades históricas e ideológicas têm sido traídas pelas nossas atitudes (e posturas) ao longo dos anos (muitas vezes isto não dura nem uma década, para estas “traições”) …

Isto não inviabiliza questionamentos a cidadãos que delataram colegas… A História não pode ser apagada…

O Comitê de Atividades Anti-americanas aconteceu dentro do contexto da Guerra Fria…

Assistimos a um filme na Mostra SP, A Maleta Mexicana, em que um personagem mexicano diz que “os EUA gostam de armazenar memórias próprias e alheias em seus museus, etc, e adora descontextualizá-las”. Higienizá-las de seus conteúdos sociais, históricos, políticos, etc.

Em certa medida (li correndo) creio que vc, tão politizado, acaba pregando esta descontextualização.

elia kazan

 

Geraldo Veloso (08/11/2011 – fonte Almanakito)

Querida Rosário

Acho uma briga ruim esta de “defender” Kazan. Nunca o fiz. Nunca “livrei a cara” do dedo duro que inviabilizou a carreira de muitos camaradas do Partido Comunista Americano. Não estou falando do Kazan “cidadão”, mas sim do Kazan “gente” (fraco, dúbio, inseguro ideologicamente e, eventualmente, calhorda). Joe MacCarthy, um filho da puta que criou a famosa caça às bruxas, felizmente já está recolhido ao seu lugar: o lixo da história. A complexidade do processo político que testemunhamos durante o desenrolar do século XX (que não é nem um pouco diferente do resto da história) nos traz aquilo que chamo de tradição de “traições” e reviravoltas que a ação políticia nos deu. Lênin (Vladimir Ilitch Ulianov) rompeu com a II Internacional e deu uma “volta” nos mencheviques (social democratas, pouco depois da deposição do Czar, em fevereiro de 1917) sob a argumentação de que eram “reformistas” burgueses que não queriam mudar coisa nenhuma no processo das elites russas. E criou a guinada bolchevista da revolução russa. E teve de recuar diante da impossibilidade de gerir uma nova “burocracia” revolucionária que desse conta do projeto de integridade da nação russa (já denominada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Era necessária uma nova “ordem” que desse conta dos projetos revolucionários de um novo mundo, de uma nova Rússia, de um novo homem. E criou um recuo “capitalista” (nunca é pouco lembrar que Marx nunca colocou a Rússia tzarista como uma possibilidade de construção de um projeto socialista em direção a uma sociedade “sem classes” – o comunismo) num país que, aos frangalhos que o tzarismo o tinha relegado (sobretudo, naquele momento, comprometido com uma guerra indesejada, onde o povo – que era sacrificado no exército – lutava descalço e faminto, num conflito com o qual não tinha nada a ver). Dentro de um raciocínio marxista, percebeu que antes de buscar a construção do socialismo, tinha de dirigir a nação  em direção a um capitalismo que levasse o país a ter uma classe operária com o potencial de criar as condições para a transição para o socialismo. E criou a NEP (a “nova política econômica”). Paralelamente um outro personagem fundamental em tudo isto, Leon Davidovitch Bronstein (alguns o chamaram de Trotsky), negociava a paz unilateral em Brest-Litovsky, tirando a Rússia (ou já URSS) do conflito mundial e era incumbido do “serviço sujo” de rearticulação do território nacional, invadido por 12 nações coloniais, contrariadas com os rumos da revolução de 1917, que lhes tirava os privilégios econômicos e coloniais que estavam habituadas. E esta figura, com a mão de ferro, criou o Exército Vermelho e cumpriu a sua missão. Infelizmente Lênin morreu em 1924, vítima de sequelas de um atentado. E a briga política interna trouxe à tona um burocrata silencioso, soturno e eficiente, que havia construído as bases do PCUS. Dura transição. Lênin e Trotsky (embora este só tenha aderido ao movimento às suas vésperas – Lênin, em off, costumava dizer que Trostky “era capaz de morer pela URSS – desde que “toda” a URSS estivesse assistindo…) eram intelectuais geniais (sofisticados, bem informados e com uma capacidade de mobilização brilhante – grandes oradores, políticos filhos de uma aristocracia burguesa intelectual brilhante – a Rússia, no século XIX, criou um clima para o florescimento de uma literatura de gênios como Tolstoi, Dostoievsky, Gogol, Puchkin, Tchecov e dezenas de outros, além de um “jovem” que se tornaria o intelectual da transição, Gorki).

Não era o caso de Iussuf Vissarianovitch Djucativili (o Homem de Aço, Stalin). Este georgiano duro, rígido, determinado, recusava os cobertores, no frio da Sibéria (quando de sua prisão pelo tazrismo), para não “perder o ódio pelo tzarismo” como motor de suas convicções. E silenciosamente cobriu o vácuo do poder deixado por Lênin, com sua morte. E não deu outra. Da mesma forma que a burocracia stalinista foi pouco a pouco afastando a intelectualidade (revolucionária e de vanguarda) representada por todos os grandes artistas e pensadores que deram as cartas do início do século (na onda das vanguardas cosmopolitas do futurismo, numa leitura “russa” – Maiakovsky, Mayerhold, Kulechov, Vertov, Malevitch, Rodchenko, Gontcharova, Shklovsky, Jakobson, Brik, Iessenin e, certamente, Eisenstein, entre dezenas de outros) em nome do afastamento das “vanguardas” decadentistas, formalistas, aristocráticas, hermeticistas, entre outros adjetivos generalizantes, reducionistas e pouco “gratos” ao papel que estes personagens tiveram na construção do momento revolucionário, a luta política fez de Trotsky a sua primeira vítima (este era o mais ameaçador personagem a contrastar com o poder de Stalin). E aí temos uma primeira grande “traição” no âmbito da vanguarda revolucionário mundial.

E depois tudo vai se precipitando. Um discurso programático colocava em causa a progressão da luta revolucionária: o socialismo deveria ser construído dentro das fronteiras da URSS ou deveria ser “exportado”? Do ponto de vista marxista, não havia fronteiras: o capital é “sem pátria”, não tem fronteiras. O “nacionalismo” era defendido por sistemas políticos adversários (o fascismo, o “nacional socialismo” – enquanto era restaurador do orgulho nacional alemão, fomentado pelos interesses políticos do ocidente, que queriam Hitler forte para encarar o inimigo incômodo do ocidente, Stalin, perseguindo os comunistas e movimentos operários – pós Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, na fugaz experiência espartaquista alemã, do pós primeira guerra). Stalin insistiu, realisticamente, na construção do socialismo no território nacional, ao contrário de Trotsky que insistia na “revolução permanente”, sem tréguas (uma tese idealista, sem base na realidade política internacional). E construiu o primeiro regime socialista, materialista dialético, da história. A duras penas. Com mão de ferro. A URSS (e seu povo, seus kulaks, sua complexa formação étnica) sentia falta do “paizinho”, imperador. Stalin construiu o “culto à personalidade” como estratégia de manutenção da burocracia que se constituiu, para a construção do socialismo. E a que preço!

O XX Congresso do PCUS, em 1956 (três anos depois da morte de Stalin) “entregou” os podres e o preço da manutenção do regime de construção de uma nova potência mundial (a URSS). Seus planos quinquenais, sua mobilização nacional para a guerra contra os nazistas, seus “gulags”, etc. A China, uma aliada (depois da tomada do poder por Mao, em 1949) não “engoliu” a estratégia de Kruschev e rompeu com a URSS. A URSS, aliada dos EUA, durante a II Guerra, tornara-se uma ameaça (se não tivesse havido Yalta, os soviéticos teriam chegado a Lisboa, depois da vitória contra os nazistas, em Stalingrado e tinha se tornado uma potência nuclear, com a bomba A e H). Os EUA, grandes vencedores da II Guerra, substituiram o império inglês com a nova política imperial de origem anglo-saxã. Tinham entrado na guerra depois de se tornarem uma grande potência construtora de armas (armaram, inclusive, a URSS) – o que deu para eles uma hegemonia, que persiste até hoje, militar e econômica, baseada na indústria armamentista. O Plano Marshall, produto de um planejamento geopolítico, criou uma nova divisão do trabalho no mundo, elegendo a Europa e o Japão (perdedores da guerra) como fornecedores de mão de obra de elite para a nova ordem econômica do mundo. E pintou a “cortina de ferro”. E a guerra fria.

Joe MacCarthy, uma mula política sagaz e oportunista, demonizou o mundo comunista e importou a paranóia anti soviética para os EUA. E o movimento intelectual americano (como todo o movimento intelectual mundial) seduzido pela fascinação pelo projeto messiânico de construção do “novo homem”, estava impregnado na indústria cultural americana (Hollywood, literatura, teatro, etc.). E figuras como Losey, Polonsky, Trumbo, Wilson, Chaplin, etc. sobraram, da “nova América” (só para citar os elementos da arte do século, o cinema). E surgiram os “fracos” personagens (quando não os “convictos”, como Robert Taylor, James Stewart, Adolphe Menjou, etc.) como Kazan, Sterling Hayden e outros. Ninguém nega isto: está nos registros da história.

Desculpe-me, mas ao raciocínio exposto acima (adiante, no texto), chamo de “contextuação”. Ao contrário do que estou sendo tachado.

Mas a complexidade do século é enorme. Constantin Stanislavsky (um nobre russo, assim com Igor Stravinsky) não aguentou o tranco da URSS e saiu fora (entre outros “russos brancos”). Se formos ser rigorosos na análise ideológica do processo intelectual que pontuou o século, vamos ter de ir fundo nas propostas programáticas destas figuras. Brecht o fez. Para ele, a estética neo-aristotélica (que embasava a estética que utilizou organicamente o “método” de Stanislavsky), era “reacionária” e “de direita”. Stravinsky não era um primor de comportamento humano. E o cinema buscou (assim como a literatura contemporânea e o teatro) o realismo. Lukács (vítima de vários ataques da burocracia stalinista, aos quais respondeu com dezenas de “auto críticas” melancólicas) dizia que o “irracionalismo” (da arte contemporânea) era o índice do período imperialista.

E as “leituras” do marxismo se multiplicaram. Fidel chegou e deu uma rasteira em Yalta, implantando uma república socialista no “quintal” da máfia americana, a 200 milhas da Flórida. Mas o Che não quiz ser “governante”. Quiz manter-se como militante da “revolução permanente”. E virou um mártir, numa revolução perdida (primeiro em Angola e, depois, definitivamente, na Bolívia). Não há amadorismo na geopolítica mundial. Nem a URSS resistiu. A hegemonia americana é vitoriosa: colocou Lech Walesa no poder e, depois, um papa polonês (por quase um milênio não havia um papa que não fosse italiano – mataram o primeiro e, em um mês, o substituiram). Logo depois o “muro” de Berlim caiu. Palmas para a “democracia”.

Os frankfurtianos (neo hegelianos – na ambição de buscarem nas origens do mestre Marx os fundamentos para um novo criticismo estético e político) deram as dicas para maio de 1968 (Adorno, Habermas, Horkheimer, Benjamin – que se matou perseguido pelos nazistas – além de Marcuse), além das leituras psicanalistas pós marxistas de Fromm (e Reich), ou Althusser (um pós estruturalista) pontuaram o pensamento contempoâneo (e pontuam). Sartre, sempre cortejando os marxistas (e sempre rejeitado pelo PCF, de Thorez e Marchais), vai para as ruas vender o “L’Humanité Nouvelle” (maoista) e tenta um esforço de aproximação com o marxismo no seu “Crítica da Razão Dialética”. Mas os “meninos” de 1968 (antecipados por Pasolini, que os chamava de burguesinhos mimados que logo iriam trair os ideais revolucionários) logo “entregam o ouro” e aderiram à política “real”. O Yippies americanos (Jerry Rubin, Abbie Hoffman, John Sinclair, MC-5, etc., pais dos Wethermen) viram corretores da bolsa (a exceção, justiça seja feita para Hoffman, que morre no exílio canadense). Eldridge Cleaver, um dos mais consistentes teóricos e militantes do Black Panther Party, depois de um exílio argelino, abjura a militância e “volta aos atavismos” e se torna pastor batista. Timothy Leary, um dos mais radicais revolucionários da mente, preso com sua mulher Rosemary, no Afeganistão, pela CIA, entrega o ouro das catacumbas da contracultura. O Rock se torna industrial (a bíblia, do Rock, a revista Rolling Stone, se torna um release da grande indústria fonográfica). Lennon (antes de ser assassinado), já tinha declarado que o “o sonho acabou”.

Glauber, sempre estigmatizado pela esquerda “aventureira” brasileira (lembrem-se do debate em torno de Terra em Transe, quando é acusado de “excluir” da cena do poder de “Eldorado”, o exército, no filme) e cria o seu próprio estigma ao dizer que Golbery é o “gênio da raça”.

E a nova esquerda surge dos escombros da carnificina que dizima o Comitê  Central do Partidão (o nosso “Clube”), em 1975, negando a tradição das conquistas trabalhistas e nacionalistas de Getúlio, sob as bênçãos da burocracia militar que tomou conta do país, ou dos mártires do Araguaia ou da clandestinidade. Mas a esquerda agora “ganhou” a guerra. Estamos (será que posso me considerar membro deste processo de vitória – eu, pessoalmente, ou geracionalmente?) no poder.

Em meus tempos de militância (antes de 1964) nos uníamos, no movimento estudantil, aos católicos da JUC/JEC (depois AP) e aos independentes (dos quais fazia parte, em Minas, o “revolucionário” Newton Cardoso) e à POLOP (brincávamos que a POLOP estava reunida, em uma plenária nacional, rodando pela cidade, dentro de uma Kombi). A “frente única” ganhava os congressos da UNE/UME/UEE (com Aldo Rabello, José Serra, José Dirceu, Vinícius Caldeira Brant, Wladimir Palmeira, Marcos Medeiros, Wellington Moreira Franco, Jean Marc Van Der Veid, etc.) e dominava a cena estudantil. Jango nos prometia reformas e se assegurava de sua posição de poder (depois de ter sido garantido por Brizola e pelas negociações de Tancredo, que propôs o parlamentarismo) com o seu “esquema militar”. Imprudentemente foi a uma manifestação de marinheiros (a força mais fascista das forças armadas) e se dirigiu a cabos e patentes mais baixas, dando a deixa para os militares indecisos aderirem à sua queda (o rompimento da “sagrada” hierarquia funcional das forças armadas).

Caricatura agressiva a Elia Kazan

Nesta ocasião dízimos, já nos achando com o “pé no poder”, que depois de “chegar lá” (no poder) “o pau ia quebrar” (com as alianças frágeis – igreja de esquerda, ainda frágil naquele momento, os brizolistas, o Partidão, os foquistas, os trotskistas – muito frágeis, assim como os membros do PCdoB, aliados a Pedro Pomar, Maurício Grabois, João Amazonas, Arruda Câmara e outras grandes figuras). Tenho a impressão que o momento chegou: o pau quebra. É a hora das definições de territórios. E o pragmatismo político apreendido por anos de exílio e sofrimento (e lutas) nos norteia. Governar não é mole.

E nós, indivíduos, pobres mortais? Ficamos ao sabor do que há de menos marxista que é a fulanização do uso do poder. Personalidades “fazem” a história. Pessoas se tornam mágicos manejadores dos fios do destino da história, além da coerência ideológica, em nome da imaturidade do povo, que só acredita em “personalidades” que mudam a história (e a salvam). Uma nostalgia dos imperadores (filhos diretos de Deus). E assim subiu Stalin, ou os heróis foram dizimados tornando-se mártires.

E pessoas traem, viram dedos duros (quantos amigos não entregaram alguém nas masmorras ou diante de pressões insuportáveis?), ou renegam a sua tradição ideológica. Ou mesmo, traem os ideais em nome do pragmatismo demandado pela “responsabilidade” de governar em nome dos ideais (já bastante diluídos e remotos). Somos gente. Homens desejosos e inseguros. Movidos por motivações as mais diversas. Quantos trotskistas e comunistas abjuraram os seus passados (Oswaldo Peralva, Salviano Cavalcanti de Paiva, Paulo Francis, entre dezenas de outros). E aqueles que ainda se dizem fiéis a seus ideais e mantêm práticas políticas espúrias? É muito difícil crucificar Elia Kazan. Prefiro, como já disse, manter uma postura de tolerância e lucidez na percepção de que são “gente” (além de cidadãos, artistas, militantes e… dedos duros). E isso serve para nos dar um painel da história, mais rico e humano. A história não é feita por super homens. Mas por homens.

O personagem de Orson Welles, no Terceiro Homem, de Carol Reed, Harry Lime, fala para o seu amigo (representado por Joseph Cotten): “Veja bem: no Renascimento, os líderes eram criminosos inescrupulosos e sanguinários, mas a cena intelectual e artística era povoada por Galileu, Michelangelo, Leonardo, Rafael, Tintoretto, Caravaggio. E os suiços, donos de uma democracia sólida, ética, estável, o que fizeram? Inventaram o relógio de cuco!” Ninguém é herói. Ninguém tem as mãos limpas. Sejamos mais modestos e menos arrogantes.

Desculpe a verborragia e ligeireza nas análises. Há muitos mais aspectos que poderíamos ter levantado, mas acho que por ora chega. Sou, hoje, uma pessoa que tenta ser mais humilde e julgo cada vez menos os outros. Mas sou otimista e tenho certeza que o mundo está melhor. E ficará. Mas o “pecado” do maniqueismo e do fanatismo é que ainda nos leva a nos enrolar em bombas e explodir ônibus, impor poderes à força, realizar ações militares de “limpeza” étnica, etc.

Panic in the Streets - Pânico nas ruas (1950)

 

Editoria + Inácio (11/11/2011)

Ao solicitarmos as autorizações para uso das “palavras alheias” nesse post, Inácio Araújo, permitindo, ainda emendou uma consideração bastante pertinente:

“…Mas acho que esse assunto de delação do Kazan é mais velho que andar pra frente
Eu não disse nada de novo, ali:

Elia Kazan assumiu a delação como necessária

Não quer dizer que eu concorde com ele

Mas deve ser dito em sua defesa que ele não delatou nenhum inédito

Todos já estavam encrencados devidamente

A única coisa que, no meu entender, merece atenção é a seguinte, e acho que deveria entrar na conversa: quem assistir Pânico nas Ruas poderá constatar que, já antes de ser chamado a depor ele considerava a hipótese da delação como necessária (no caso, envolvendo uma epidemia).

Abs, Inácio.”

 

Links para textos que também utilizaram Elia Kazan e a Mostra como mote:

Ricardo Calil

Heitor Augusto

Sérgio Alpendre

Paulo Henrique da Silva

Um comentário sobre “Polêmico/polêmica Elia Kazan

  1. Quantos durante a Guerra Fria não suportando apenas sobreviverem nos “igualitarismos” dos fascismos vermelhos stalinistas fugiram para as desiguais democracias liberais?

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