14º Olhar de Cinema | A reconfiguração de memórias eternizadas

por Cecilia Barroso*

"A Nave que Nunca Pousa" - Divulgação
“A Nave que Nunca Pousa” – Divulgação

Houve um ponto que se destacou nas obras selecionadas este ano para a 14ª edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba: a memória. Mais especificamente, a memória que foi registrada, pode ser encontrada, o arquivo. Filmes que se debruçam sobre registros reais ou ficcionais, que transformam o que já foi filmado, fotografado ou contado em algo novo. Não é só sobre imaginar e preservar o passado, é sobre refazer, reorganizar e reinterpretar.

Entre esses filmes, “Aruanda” (1959), de Linduarte Noronha, volta à cena como referência inevitável, servindo de base ao curta “A Nave que Nunca Pousa”, de Ellen Morais. O quilombo de ontem virou paisagem de um presente arrasado pelo progresso vazio. Do antigo ao moderno, com os assustadores, gigantes e barulhentos moinhos de energia eólica que destroem o lugar aos poucos. Em tela, pessoas reconhecidas e a nova vida atormentada pelo barulho de um futuro que está sendo destruído. Destruição que se mostra também no resgate do arquivo que vira invenção em “Ontem Lembrei de Minha Mãe”, de Leandro Afonso. Ainda pensando em modificações ambientais, dessa vez com um passado real que foi extinto, o curta, em guarani, revisita o desaparecimento das Sete Quedas, com imagens naturais e oníricas, e narração em podcast. 

Há ainda a natureza que resiste, se reconstruindo sempre, como a Floresta do Congo, a maior do mundo, que sempre foi acompanhada, observada. “A Árvore da Autenticidade”, de Sammy Baloji, usa registros meteorológicos para criar um filme em três partes, misturando dados, diários e memória num jogo de leitura e imaginação. É um filme que, além de tudo que se vê, se engrandece com aquilo que se constrói depois de visto, a interação que se estabelece entre a natureza diante da câmera e quem está diante da tela.

O que é privado tem o seu lugar e importância dentro da seleção. São histórias tão privadas que alcançam o universal pela fácil identificação com o tema. A força do arquivo pessoal está em “Cais”, de Safira Moreira. O primeiro longa da diretora segue o fluxo de sua busca ao costurar fotos e memórias familiares, e misturar passado e presente, conversas e opiniões para falar de luto e ancestralidade. A família também é o centro de “Aurora”, de João Vieira Torres. Ele parte de arquivos pessoais para reconstruir laços e reencontrar suas ascendentes e outras pessoas de uma vida que ficou para trás. Ao pensar naquilo que ultrapassa o que é individual, o diretor acaba desenterrando gerações de violência contra mulheres.

O passado presente

O Brasil de hoje esteve nas telas com “Paraíso”, de Ana Rieper. Com um apanhado de imagens ela dá pistas das estruturas classistas, machistas e racistas que determinam o presente do país. Presente este que chega em forma de depoimentos, na memória recente de quem tem consciência, mas ainda consegue olhar para um outro lado.

Entre os filmes mais inventivos da seleção está “VOZ, ZOV, VZO”, de Yhuri Cruz, parte de uma carta e une seus personagens dentro de um pequeno estúdio, em um inusitado musical quase silencioso, onde as vozes se amplificam pontualmente. Mesclando teatro, dança e canto, o longa aborda a ditadura pelo viés racial. Já “Dahomey”, de Mati Diop, não poupa a palavra, mas escolhe a poesia para dar voz a antigas estátuas. Representações de um passado que são humanizadas em lugares distantes, para onde foram depois de serem saqueadas. No retorno para casa e no encontro com novas gerações, está a discussão de pertencimento e memória.

Além das cartas e das estátuas, o festival também trouxe os livros didáticos com “Glória e Liberdade”, de Letícia Simões. A diretora vai em busca do apagamento histórico das revoltas populares do Norte e do Nordeste ao criar um novo país onde elas finalmente são lembradas. Na verdade, elas ganham nova configuração, com uma animação acelerada e cheia de cor que reconfigura o Brasil completamente.

Memórias inventadas

O Olhar de Cinema não deixou de apresentar registros reais que servem de argumento para dramas maiores e mais complexos. É o caso das partituras da violinista Kathleen Parlow e de seu concerto mais raro, e da busca incansável de uma musicóloga em “Medidas para um Funeral”, de Sofia Bohdanowicz. Um filme que se constrói na e pela música, criando tensão e opressão ao misturar este elemento com família e investigação.

Chegando em um lugar diferente, há histórias que não existiram, mas também se encontram nos elementos que perpetuam a memória e a continuidade dos afetos. É o caso do novo filme de Daniel Nolasco, que tem em fotos, quadros e talvez em um registro sonoro a marca de um passado e do romance que inventa em “Apenas Coisas Boas”. Um filme que mantém a estética queer com todos seus clichês e coloca o desejo sexual no campo goiano, com sentimentos para lá de conhecidos. Da mesma maneira, a criação é completa, ou quase, em “Ariel”, de Lois Patiño. As ficções em que se baseia são tão próximas, a intimidade com elas é tão grande, que elas chegam a ser quase fato. Na sua realocação de tramas para velhos conhecidos, numa ilha onde não existe passado nem futuro, personagens de Shakespeare vivem seus papéis eternamente. Entre sonho, realidade e ficção, a memória assume o papel principal. 

Esses foram alguns dos destaques de uma edição em que os meios possíveis de eternizar a memória e suas transfigurações, reinterpretações e recriações estavam em lugar de destaque. Uma seleção de filmes que vai aos registros não para celebrar o passado, mas para questioná-lo, reorganizá-lo e transformá-lo. Com uma curadoria afiada, mais uma vez, o Olhar de Cinema cumpriu o seu papel de buscar o novo e o desafiador em seu 14º ano de existência. Seguindo a tradição, o festival trouxe também ao público Eisenstein, Varda, Cissé e Lynch. Já da América-Latina, resgatou “Eu, a Pior de Todas, da argentina María Luisa Bemberg, e, “A Grande Cidade”, de Cacá Diegues”. Sem dúvida, não decepcionou quem já o acompanha quanto surpreendeu e agradou quem chegou pela primeira vez. Que venha a próxima edição.

*Cecilia Barroso integrou o Júri Abraccine no 14º Olhar de Cinema.

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