34º Cine Ceará | Ritmos Diversos: Balanço de Uma Mostra Involuntariamente Musical

por Messias Adriano*

"Brasiliana: o musical negro que apresentou o Brasil ao mundo" (2024), de Joel Zito Araújo - Divulgação
“Brasiliana: o musical negro que apresentou o Brasil ao mundo” – Divulgação

De forma curiosa (e provavelmente acidental), cinco dos seis longas-metragens selecionados para a mostra competitiva ibero-americana do 34º Cine Ceará são permeados pela música. Quando não explícita no título, ela se faz fortemente presente na trama dos filmes que concorreram ao Troféu Mucuripe, prêmio maior do festival.

Em “Brasiliana: O Musical Negro Que Apresentou o Brasil Ao Mundo”, coube ao diretor Joel Zito Araújo o resgate histórico de um musical nacional itinerante de grande sucesso, especialmente na Europa durante os anos 1950 e 1960. O grupo teatral intitulado Brasiliana era composto por dançarinos negros que levavam a diversos países apresentações de símbolos da nossa cultura, da umbanda ao carnaval. Próximo da linguagem jornalística ou televisiva, o filme em si não parece chegar aos pés do que parece ter sido a energia potente do espetáculo tema do documentário.

A intensidade vigorosa e frenética da montagem se faz presente em “A Bachata do Biônico”. Biônico é um viciado em drogas que vive de forma precária e se vira como pode nas ruas do local onde mora. Ao descobrir que seu grande amor está em vias de sair de uma clínica de reabilitação, ele precisa se recompor para evitar que a mulher de sua vida lhe escape pelos dedos. Um ritmo musical essencialmente dominicano, a bachata está no título, mas não necessariamente de forma direta na trama.

Trata-se de uma comédia de humor rasgadíssimo que traz no protagonismo um usuário de crack. Tinha tudo pra dar errado e tropeçar no ofensivo de mau gosto, mas a condução de Yoel Morales e o talento do ator Manuel Raposo fazem com que o público ria “com” o personagem e não “do” personagem. Se a bachata é assumidamente um gênero romântico e de ritmo único, por que não associar esses dois aspectos (amor e ritmo) ao frenético e apaixonado protagonista? Nesse sentido, o título, assim como o filme, funciona muito bem.

Do lado oposto à energia caótica do dominicano, o nacional “Um Lobo Entre os Cisnes” aposta em uma narrativa bem mais clássica e comportada. O filme é baseado diretamente na história do bailarino Thiago Soares, que saiu da periferia suburbana do Rio de Janeiro para se tornar um dos principais bailarinos do Royal Ballet de Londres. A câmera dos diretores Marcos Schechtman e Helena Varvaki flutua de forma sofisticada pela coreografia dos ensaios de balé, mas o desenrolar um tanto quanto cafona da trama não colaboram para colocar a obra entre as que serão lembradas com carinho após o festival.

Já o documentário “En La Caliente – Contos de um Guerreiro do Reggaeton” mostra uma Cuba sob um olhar instigante. Músico de sucesso nos anos 1990 no país caribenho, Kandyman agora vive recluso após ter sido constantemente censurado pela ditadura da ilha. O filme explora uma tentativa de volta da figura mitológica à cena musical, mas a trama talvez esbarre um pouco na falta de coerência e de carisma do protagonista.

Ora, mas quem não é incoerente e antipático algumas vezes? Talvez isso seja inclusive o que torne Kandyman uma figura real e afastada da hagiografia comum às biografias musicais. O longa faz bem em explorar não somente o guerreiro da periferia, assim como muitos outros exemplares aos quais o filme dá voz, mas também as perversas proibições e desmandos de um governo autoritário e controlador nas mais diversas áreas, inclusive na cultura popular.

De uma ponta a outra da América Latina, do Caribe para o Uruguai, “Milonga” traça um belo retrato da solidão de uma mulher de meia idade com diversos conflitos internos. Viúva, abandonada pelo filho e com um passado de muitas dores, Rosa (Paulina Garcia) vê uma chance de se reinventar ao conhecer um homem pelo qual se interessa romanticamente. De direção econômica e eficaz (um resultado difícil de se atingir), Laura González explora muito bem o arco dramático daquela mulher, ao mesmo tempo que seu roteiro deixa algumas pistas recompensadoras do que pode acontecer, por mais que uma ou outra atitude sejam um tanto quanto excessivamente explícitas.

O único que não traz música no título, ou de forma mais forte na trama, é o belo argentino “Linda”. Na trama, Linda (China Suárez) é uma nova empregada contratada por uma família abastada. Atraente e jovem, a mulher é a faísca de desequilíbrio na casa, visto que todos os membros da família (todos mesmo) acabam sendo seduzidos pelo charme do ser estranho ao ambiente. Se for para espremer e forçar a relação musical no filme, há uma engraçada passagem na qual o patriarca expõe orgulhosamente seus discos e equipamentos caros de som para a nova contratada, em uma tentativa frustrada de flerte.

A diretora Mariana Wainstein trabalha planos abertos e closes de forma a revelar os desejos íntimos (sexuais ou não) daqueles personagens. Dessa forma, consegue explicitar as hipocrisias particulares e sociais daquele microcosmo de forma elegante. Assim como as imagens iniciais de um besouro num copo d’água ou na piscina, Linda chega ao local para causar incômodo, ainda que involuntário. O prêmio de melhor longa-metragem do júri da crítica ficou em boas mãos.

Por ser um festival ibero-americano, Espanha e Portugal também poderiam ter filmes selecionados para a mostra principal, mas não o foram. Seria a América Latina mais ligada à música do que nossos amigos ibéricos? Certamente é uma divagação que sequer passou pela curadoria.

O fato é que, assim como a amplitude que separa uma bachata de uma milonga, um reggaeton de um balé, os longas se mostraram ricos em sua diversidade estética e de linguagem, temática e de gênero, provando mais uma vez a força inventiva do festival, que já prepara a sua 35ª edição em 2025.

E que venham muitas outras.

*Messias Adriano fez parte do Júri Abraccine.

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