por André Guerra*

O caminhar de pessoas anônimas já é capturado pela câmera de Ricardo Alves Jr., na primeira sequência de “Parque de Diversões”, a partir de um registro voyeur. O erotismo e a tensão crescente dos corpos se aproximando de um destino — e também da câmera — obedecem tanto a uma estética crua das ruas de Belo Horizonte quanto a uma dança previamente organizada em um cenário delimitado, com a trilha e a montagem ritmando a entrada de cada um como se fossem ímãs atraídos para um mesmo ponto.
O destino em questão é um parque municipal com brinquedos variados que, no meio da noite, se transforma em um espaço no qual esses corpos desconhecidos (e quase sempre silenciosos) buscam prazer sexual — em suas mais distintas ramificações, fetiches e performances. As luzes intensas dos equipamentos de lazer se materializam na presença dos anônimos que chegam para praticar o que é conhecido como “cruising” (ou flertes e “pegação” entre estranhos em lugares pouco movimentados). O termo deu nome a um dos longas mais icônicos de William Friedkin, cujo título no Brasil ficou “Parceiros na Noite” e que é, visual e tematicamente, referendado em “Parque de Diversões”.
Vemos os personagens se tocando, explorando os corpos uns dos outros em diferentes níveis e compassos, de situações breves e gestos mais delicados até os fetiches mais imprevisíveis (que, em contexto normativo, seriam facilmente taxados de chocantes ou indigestos, mas que aqui quase anulam o seu impacto através da sucessão ininterrupta) e não raro cômicos. A comunicação através dos olhares e gestos é uma das mais marcantes características da prática retratada pelo filme de Alves Jr. A ritualização dos movimentos exprime uma ideia de acordo entre todos esses corpos e uma cadência já antecipada pelos minutos iniciais: tudo é ao mesmo tempo realista e, em certa medida, ensaiado.
O roteiro, assinado por Germano Melo, é dramaticamente plano (não há conflitos ao longo dos 72 minutos de duração ou qualquer tipo de sugestão de causa e efeito). O longa não elege um protagonista entre os sujeitos anônimos que escolhe para acompanhar – e tampouco faz de “Parque de Diversões” um filme-coro. A estrutura adotada para revelar cada uma das situações privilegia a força das individualidades, exaltando, assim, a liberdade que esse ambiente concede à realização irrestrita da sexualidade de corpos considerados desviantes. Não é no conjunto dessas figuras, portanto, que o trabalho encontra sua força, mas na plenitude de cada pulsão particular.
Não faria sentido, nesse contexto, que “Parque de Diversões” fugisse de uma representação totalmente explícita da nudez e do sexo. A liberdade do fazer, aqui, entra em paralelo com o ato de registrar, de assistir. Assim como a plateia durante a sessão, frequentemente o longa chama atenção para os que apenas observam (e se deleitam) com os atos alheios. Da escuridão quase absoluta do parque, emergem closes muito expressivos esteticamente de algo que, em uma iluminação realista, permaneceria nas sombras. O cuidado visual ao trazer a uma luz nítida esses rostos que observam demonstra um olhar muito franco em relação aos mais íntimos anseios por contato.
Cada brinquedo infantil é ressignificado a partir dessa lógica do sexo e a ideia de brincadeira se mistura ao sentir — e ao ser sentido. É curioso como, de algum modo, existe um componente essencialmente lúdico nessa “caça ao flerte”, ao toque, ao prazer e à diversão, ainda que a escuridão absoluta em torno das cores remeta a uma sugestão de violência, de perigo (que nunca se consuma). Não existe uma ordem coerente entre cada um dos atos e, dentro de uma marcação temporal muito perceptível, há uma aleatoriedade inevitável na forma como as pessoas entram e saem de cena.
Ainda que não explore a geografia do parque com tanta criatividade quanto poderia e feche o quadro em demasia (ao ponto da repetição) para isolar os atos, é legítimo argumentar que o filme consegue tirar da desorientação espacial parte de sua força. A proposta labiríntica não deixa de fazer parte da brincadeira e o convite corajoso que a direção e o roteiro fazem parecer ser justamente para que a plateia se perca junto com eles por aquele intervalo de tempo.
*André Guerra foi presidente do Júri Abraccine na 28ª Mostra de Tiradentes.
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