Por Paulo Henrique Silva*
Dirigido por Miguel Falabella e baseado numa peça de sucesso assinada por ele e Maria Carmen Barbosa, “Querido Mundo” é o filme mais afeito ao grande público entre os longas-metragens concorrentes do 53o Festival de Cinema de Gramado, realizado em agosto. O que não quer dizer que seja uma obra fácil, sem ousadia. Uma das características da seleção de 2025 é que não houve nenhum produção que nos traz aquela sensação de inadequação, como aconteceu em outras edições.
“Querido Mundo” é todo realizado em preto e branco e tem uma boa parte dele realizado num único cenário, concentrado nos diálogos da dupla Malu Galli e Du Moscovis. Alguém pode até questionar essa opção, mas a coragem não. Filmes em P/B são vistos como prejuízo certo pelos exibidores. Os outros cinco concorrentes também carregam ingredientes que o colocam num patamar diferem dos longas mais convencionais, de uma maneira mais ou menos intensa.
Com um elenco hoje conhecido, com Bella Campos e Xamã, “Cinco Tipos de Medo” é um filme do Mato Grosso, algo já insólito em se tratando de longa-metragem e mesmo de produção cinematográfica. Só o fato de mostrar uma realidade distante dos grandes centros já traz algo bastante novo, mas a obra de Bruno Bini tem outros ingredientes interessantes, como a sua narrativa que estabelece um grande mosaico a partir de diferentes pontos de vista.
O mais difícil nesta empreitada é fazer a história avançar, enquanto ela faz recuos estratégicos para entendermos as motivações de cada personagem, do violinista que se envolve amorosamente com a garota de um bandido a uma capitã de polícia com desejo de vingança. Dentro do gênero policial, Bini fala de destino e pessoas carentes emocionalmente ao mesmo tempo em que retrata com tons fortes o mundo da criminalidade no país.
Douglas Soares também fez um filme com apelo de público, em “Papagaios”, calcando-se especialmente no humor, a partir dos chamados “papagaios de pirata”, pessoas que fazem de tudo para aparecer na TV, nem que seja por alguns segundos. O realizador estabelece um universo próprio para esse tipo, vasculhando seus anseios (a representação do sucesso) e fragilidades (a falta de construção de um trabalho próprio), tendo o ótimo Gero Camilo como protagonista.
“Papagaios” não se satisfaz apenas em construir essa realidade, que pode muito bem dialogar com o significado das redes sociais hoje, e desenvolve um segundo personagem (Ruan Aguiar) para discutir o que é uma atividade engraçada pode se tornar, quando o desejo de vasculhar a vida do outro e assumir o seu lugar aponta para a psicopatia. Uma crítica bastante atual os prazeres que estão sendo levados até nós de maneira natural, sem qualquer limite ético.
Com Denise Fraga, “Sonhar com Leões” também consegue flertar com eficiência entre a comicidade e a temática mais aprofundada, ao abordar uma mulher com câncer terminal que resolve abreviar a vida para evitar o prolongamento da dor. A eutanásia e o direito de morrer são temas tabus, mas o diretor Paolo Marinou-Blanco equilibra bem a sua narrativa a partir da relação que a personagem constrói um jovem depressivo. Ao final das contas, é uma celebração da vida.
“Natureza das Coisas Invisíveis” e “Nó” são aqueles que filmes que se permitem ousar mais na experiência do espectador. Apesar da complexidade como desenvolve a história, o primeiro tem uma atmosfera leva, ao falar do ciclo da vida pelo olhar de duas crianças. Dirigido por Rafaela Camelo, nos faz perceber as mulheres como determinantes na busca de um mundo com maior afetividade, que irá culminar na formação de uma geração mais atenta ao outro.
Po fim, “Nó”, assim como “Natureza das Coisas Invisíveis”, apresenta uma perspectiva bastante feminina. Não há nenhum personagem masculino de grande relevância – eles estão ausentes em praticamente todas as esferas, o que acentua a sobrecarga vivida pela mulher de hoje. Laís Melo promove um mergulho dolorido, exibindo corpos entrelaçados como um sinal de força a partir do entendimento de que é preciso tirar esse grande peso secular das costas.
Com curadoria de Marcos Santuário, Camila Morgado e Caio Blat, a seleção trouxe trabalhos multifacetados, promovendo discussões que refletem questões no Brasil de hoje, além de serem completamente diferentes na maneira como conduzem suas narrativas, muitos deles enveredando por imperfeições que não diminuem a sua qualidade, mas reforçam a necessidade de ousadia constante, o que nos faz querer acompanhar uma geração (quase todos são estreantes em longas) em seus próximos filmes.
*Paulo Henrique Silva integrou o Júri da Crítica do 53º Festival de Cinema de Gramado, composto em parceria entre a Abraccine e a Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs).
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