Por Arthur Gadelha*
Ao fim de uma semana bem menos congelante do que eu imaginava na Serra Gaúcha, imerso na programação do 53º Festival de Cinema de Gramado, eu me deparei com um pensamento permeado de conflitos: parecia que eu já tinha assistido boa parte daqueles filmes antes, sob outras imagens, sons e histórias, mas agora vestidos numa roupa de hoje. De longe, podia até parecer um olhar sobre um cinema brasileiro que tem pavor de parecer alienígena, mas não passava de uma investigação do que eles escondiam à olhos nus.
Se você olhar para “A Natureza das Coisas Invisíveis” (DF), de Rafaela Camelo, ou “Nó” (PR), de Laís Melo, por exemplo, há ali códigos de um cinema que já foi amplamente discutido no circuito comercial e nos festivais: o cansadamente referenciado “terreno dos afetos” entre personagens destinados a mudarem a vida um do outro, a melancolia da morte, o peso de estar vivo, o recorrente drama de reencontros, o áspero mundo do trabalho, o pavor da solidão e a sociedade encastelada.
Quando Aline Marta Maia ou Patrícia Saravy entram em cena, porém, parece impossível não ser atraído por uma sensação completamente nova – a dor, a saudade, o cansaço… todas essas sensações que já vimos em personagens à beira do limite, de repente, transformam-se numa coisa nova sob a gravidade que essas atrizes têm quando tomam a tela.
Saravy protagoniza o filme paranaense, sempre carregada de angústia e exaustão, e Aline sequestra toda a atenção mesmo estando num papel coadjuvante no brasiliense. Ambos os filmes ganham uma camada muito viva quando também abraçam a transgeneridade de um jeito muito longe de ser apenas um “tema” ou “conflito” a ser encarado – pelo contrário, entrelaçando na narrativa para que, naturalmente, faça parte do mundo.
Ainda nos primeiros segundos de “O Mapa Em Que Estão Meus Pés” (AL), filme de Luciano Pedro Jr vencedor do Prêmio da Crítica de Curta, me peguei fugindo no mesmo pensamento: quantos “filmes-carta” já assistimos? Ou no recorte estético: quantos filmes de “arquivos encontrados”, quantos que buscam ressignificar memórias alheias para construir outro presente? Me parece impossível não ir parar em “Supermemórias”, filme inebriante do Danilo Carvalho que também reúne gravações em formato Super-8 de diferentes autorias para criar um significado sensorial.
Mas o jeito que o texto desliza sobre aquelas imagens, narrando uma espécie de retorno predestinado de um alguém tão apaixonado, me levou a um lugar novo. Eu estava chorando, de repente, pela saudade de alguém que não chegamos sequer a ver.
“Samba Infinito” (RJ), de Leonardo Martinelli e “Na Volta Eu Te Encontro” (BA), de Urânia Munzanzu, mergulham na magia e no segredo das festas de rua; “Aconteceu a Luz da Lua” (RS), de Crystom Afronário, “Quando Eu For Grande” (PR), de Mano Cappu, e “Réquiem Para Moïse” (RJ), de Caio Barretto Briso e Susanna Lira, olham de perto o comportamento racista de uma sociedade cínica – de longe, parece que já vimos e ouvimos todas essas histórias, mas de perto, somos convidados a nos deparar com um país de hoje.
Claro que essa sensação também pode ser negativa, como em “Cinco Tipos de Medo” (MT), de Bruno Bini, atolado num déjà vu de tantas ações policiais televisivas sem o menor trato numa briga de “polícia e ladrão” e que, mesmo assim, venceu o prêmio de Melhor Filme pelo júri oficial. O 53º Festival de Cinema de Gramado, porém, foi grande o suficiente para me fazer deixá-lo com boas memórias, histórias e descobertas de um Brasil que, mesmo vestido de um jeito tão familiar, descobri nunca ter visto antes.
*Arthur Gadelha integrou o Júri da Crítica do 53º Festival de Cinema de Gramado, composto em parceria entre a Abraccine e a Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs).
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