Por Marcelo Müller
O nascimento de um festival de cinema deve ser amplamente celebrado. Ainda que uma parcela menos informada da população, e às vezes ideologicamente enviesada, nem sempre valorize um acontecimento desses, é preciso comemorar. Festivais ocupam espaços físicos e virtuais com cultura, são acontecimentos que envolvem comunidades enquanto compartilham vivências em torno dos filmes. Festivais são oportunidades para várias obras, inclusive e sobretudo as menos alinhadas com as engrenagens mercadológicas, encontrarem seus públicos. O primeiro Lumen – Festival de Cinema Independente do Rio de Janeiro aconteceu entre os dias 08 e 15 de novembro, cumprindo com louvor os requisitos para atestarmos o seu sucesso. Primeiramente, ocupou a geografia da cidade, indo além da tão contemplada zona sul, existindo também no centro e na baixada fluminense. É algo absolutamente fundamental que poderá, quem sabe, ser expandido nas próximas edições. E, principalmente, o Lumen abriu diversas janelas para um tipo de cinema que parece quase incompatível com o atual cenário comercial cinematográfico, exibindo filmes pautados pelo risco, com propostas ousadas e férteis experimentações estéticas.
No fim do dia, gostar ou não dos filmes se tornava quase secundário. O mais importante num festival como o Lumen, que abraça o risco e pressupõe seus públicos com semelhante atitude, é oferecer acesso a obras fadadas à marginalidade de um mercado cada vez mais afeito a fórmulas servidas a plateias domesticadas. A mim incumbida, a tarefa de presidir o júri Abraccine da crítica foi facilitada por conta da gentileza e perspicácia dos meus colegas Luiz Baez e Taiane Mendes, a quem aproveito para agradecer pelas trocas generosas e diálogo enriquecedor. De cara, dos nove longas-metragens escolhidos pela curadoria para integrarem a mostra competitiva brasileira, dois eram inelegíveis por conta de normas internas: Explode São Paulo, Gil (2025), de Maria Clara Escobar, foi analisado pelo Júri Abraccine no Olhar de Cinema de Curitiba deste ano e Um Minuto é uma Eternidade para quem Está Sofrendo (2025), de Wesley Pereira de Castro e Fábio Rogério, é co-dirigido por um membro da Associação. Dito isso, os sete filmes que concorreram ao Prêmio Abraccine apresentaram não tendências, mas modos diversos de se fazer cinema.
Longe de realizar um pente fino nos filmes assistidos, este texto pretende mapear ligeiramente os convites mais interessantes que, por conseguinte, levaram às minhas melhores experiências na primeira edição do Lumen. Entre elas, dois longas que apostaram no despojamento e na graça. Jamex e o Fim do Medo (2025), de Ramon Coutinho, propõe uma Salvador distópica em que a radiação obriga os moradores a usarem óculos protetores. Nesse futuro, um pintor perambula pela cidade encontrando figuras estranhas enquanto tenta localizar o misterioso comprador que pode lhe dar folga econômica em seu cotidiano apertado. Já em Dragkiller (2025), de Johnny Victor, um assassino serial de drag queens está a solta, acompanhado por uma repórter sensacionalista que não demora a entrar no rol de potenciais vítimas. Embora sejam distintos em vários aspectos, são filmes que em alguma medida abraçam o desbunde, a quebra de convenções, tais como a progressão narrativa “comportada”, e que reciclam itens do cinema hegemônico dentro de limitações não camufladas, pelo contrário, pois assumidas como gesto.
Já Idade da Pedra (2025), de Renan Rovida, apresenta um fluxo interessante das experiências de um andarilho pela cidade de São Paulo. O homem é um rejeito do discurso capitalista, um excedente facilmente descartado quando a fábrica não dá mais certo, alguém que está sempre tentando encontrar uma forma de existir nessa realidade em que o mérito é apenas daqueles que têm. Um filme de ideias muito boas que convivem com decisões menos inspiradas. Na mesma toada de uma proposta mais bem resolvida está o nosso vencedor, Cartografia das Ondas (2025), de Heloisa Machado, um longa bonito sobre gerar filmes e filhos, no qual sobressai uma ponderação poética a respeito da criação. Os dois exemplares citados neste parágrafo são aqueles mais “maduros”, inclusive para logo disputar algum espaço no circuito comercial inchado de iniciativas menos instigantes, mas ainda com bolsões de permeabilidade ao risco, que podem permitir a ambos uma carreira comercial. Enfim, entre mortos e feridos salvaram-se todos e quem ganhou fomos nós. O Lumen teve sua primeira edição bem-sucedida e, ao organizar seu júri da crítica, a Abraccine reforçou seu compromisso institucional com um cinema que se arrisca.