12º Olhar de Cinema: Um mergulho pela busca da ancestralidade e de discutir seu lugar no mundo na competitiva brasileira de curtas

*Pâmela Eurídice

Os curtas-metragens presentes na Competitiva Brasileira desta edição do Olhar de Cinema discutem o audiovisual a partir de perspectivas que exploram uma imersão na busca pela ancestralidade e de oferecer voz a recortes de questões preciosas a grupos específicos. Neste trajeto, estabelecem pluralidade a representatividade nacional evocando polifonia e multiplicidade de temas que dialogam com as complexas faces do Brasil contemporâneo. Os oito projetos selecionados bebem do experimentalismo e de inovações no campo tecnológico os quais lhe permitem construir obras cinematográficas fluídas, miscigenadas dentro do próprio aparato técnico e que sinalizam outros caminhos possíveis para a produção audiovisual.

Nesse contexto, contudo, há espaço também para narrativas que escolhem enveredar pelo naturalismo, por se apoiar no realismo transmitido de maneira tão tangível que flerta de forma delicada e vivaz com o que denominamos de vida real. Há, então, a presença constante do poético que se apresenta como um elemento tímido diante dos itens outrora citados, no entanto ganha amplitude de acordo com a intensidade na qual a polifonia brasileira relata sua rotina, suas angústias e a procura imersiva pela manutenção histórica-social e pelo pertencimento comunitário.

Entre os filmes que utilizam a verve do realismo estão “Ramal”, de Higor Gomes, e “Thuë Pihi Kuuwi – uma mulher pensando”, de Aida Harika Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami e Roseane Yariana. O primeiro chama atenção por abordar o cotidiano de um grupo de homens negros da periferia de uma cidade no interior de Minas Gerais e a relação destes com suas motocicletas. Mais do que um transporte, o objeto se torna fonte de diversão, instrumento de trabalho e um fator de conexão, de pertencimento e ativador do senso de comunidade. 

Por meio deste vínculo, Gomes aponta condições que orbitam a masculinidade tendo como norteamento a negritude e a periferia; sua perspectiva assume uma silhueta poética através das imagens dos encontros da comunidade durante o pôr-do-sol, o movimento da motocicleta e seu escapamento. Simultaneamente, a trilha sonora e as conversas traçadas pelos personagens remontam uma vivência crua, silenciada, delicada e sensível — aproximando o público dessa relação plausível e prosaica.

"Ramal", de Higor Gomes - Divulgação
“Ramal”, de Higor Gomes – Divulgação

A fotografia de Roseane Yariana é um dos principais motivadores da naturalidade imposta em “Thuë Pihi Kuuwi – uma mulher pensando” ao lado do roteiro de Aida e Edmar Yanomami. O curta se apresenta como uma oportunidade de compreensão da mulheridade indígena uma vez que as imagens exibidas compõe o direcionamento assertivo do olhar feminino e a narração em off, seus pensamentos. Deste modo, os diretores nos brindam com as indagações mulheris diante de uma atividade de seu cotidiano e os assombros que habitam sua mente enquanto observa o companheiro preparar uma substância utilizada na etnia. Duas escolhas narrativas se sobressaem na projeção: a maneira naturalista como a câmera de Yariana capta o corpo indígena feminino nu e o predomínio da língua dos Yanomami.

Seguindo a temática indígena, mas optando pela jornada experimental, está a animação “Kanau’Kyba”, de Gustavo Caboco. Um passeio pela história da humanidade a partir do panorama brasileiro, relembrando os fenótipos presentes na miscigenação nacional e os elementos — em muitos momentos esquecidos — que alicerçam a conjuntura cultural. O uso do desenho animado possibilita ainda que as escolhas visuais possam embarcar na trajetória que Caboco procura elucidar destacando o incêndio no Museu Nacional e como isto afeta o estabelecimento — ou seria apagamento? — histórico-cultural do país. O vermelho forte e predominante da projeção fomenta também certo grau de paralelismo ao relembrar o pau-brasil e o sangue indígena derramado desde que os portugueses aqui atracaram.

A escolha de Caboco abre caminhos para que se discuta a importância da ancestralidade no sentido de conhecer as jornadas que nos envolvem, algo expandido por Maurício Chades em “Cemitério Verde”. Afinal, quantos percursos paralelos são necessários para forjar nosso próprio itinerário? Como as pessoas que passaram em algum momento pelas nossas vidas influenciaram o trajeto que abraçamos? Chades utiliza a memória e o afeto que esta carrega para suscitar respostas a esses questionamentos, por meio de um cinema experimental e uma montagem hábil que sobrepõem imagens a fim de criar uma ponte entre reminiscências e a natureza.

“Kanau’Kyba”, de Gustavo Caboco – Divulgação

Ao mesmo tempo em que as lembranças se unem para evidenciar aonde a protagonista almeja chegar e o que pode ser feito para que alcance o seu objetivo, acompanha-se certa deteriorização do bioma em destaque. É como se ela quisesse que todos os seus queridos se tornassem árvores eternizadas em seu jardim pessoal, mas não percebesse como isso soaria egoísta para aqueles que também precisassem usufruir da energia emulada por eles. No final das contas, no entanto, o esquecimento paulatino do rosto e da voz dos amados acarreta ainda assim a destruição da mata visto que esta reflete a memória e as lembranças das pessoas, como alguém cujo perfume de uma flor a conduz a associar ao outro. O sussurro como se projeta a narração em off desencadeia variadas reflexões quanto às recordações, sentimentos e como o meio ambiente pode ser discutido dentro desse contexto.

“As inesquecíveis”, de Rafaelly, utiliza recurso semelhante ao traçar um paralelo entre a onça e o corpo transsexual, compara-se a força e a beleza do felino ao pluralismo e graciosidade de suas estruturas físicas. Os registros fotográficos e as imagens em movimento relembram filmes caseiros antigos nos quais a naturalidade e a singeleza do cotidiano preenchem os espaços no écran; escolha que sensibiliza o projeto e destaca sua delicadeza e simplicidade. Há uma movimentação política, uma vez que falamos em corpos que estão sempre em posição de resistência, porém a poesia se sobressai. 

O roteiro de Rafaelly em parceria com Yná Kabe Rodriguez se apoia em sutilezas e acontecimentos pontuais para se fortalecer. Situações como o encontro pela vida da luta trans e os passos de dança dos personagens poderia desmembrar-se em discussões prolongadas em contextos sôfregos, mas servem para emular a liberdade de ser quem quiser ser e como construir doses homeopáticas de felicidade com o que se possui até que os momentos de completude encubram os dias nublados.

“As inesquecíveis”, de Rafaelly – Divulgação

O tom poético e as memórias também acompanham “O mar também é seu”, de Michelle Coelho. O clima inefável e onírico é utilizado para amenizar o tema central da produção, o aborto, e discuti-lo de maneira consistente. Para isso, Coelho se apropria da ancestralidade negra e indígena buscando aspectos complementares entre elas e suas relações particulares com a natureza, além de evidenciar como a sororidade pode ser fundamental para evocar a sobrevivência e o renascimento feminino. A partir desta percepção, o filme é preenchido por uma emoção narrativa exposta nos planos fotográficos de Luiza Calagian que consegue mesclar imageticamente devaneio, memórias e rejeição.

Dentro da proposta de trazer olhares múltiplos e amplificar a pluralidade no quesito tecnológico, há também “Apocalypses repentinos”, de Pedro Henrique, e “Virtual Gênesis”, de Arthur B. Senra. O projeto de Henrique lembra em certos ângulos discussões universitárias e a própria produção acadêmica, uma vez que bebe da metalinguagem e de um discurso pós-moderno retratado no monólogo de uma jovem cineasta acerca de suas angústias e anseios contemporâneos para o futuro. A colagem de movimentos, o recorte de estilos e gêneros cinematográficos e o fluxo verborrágico de dicotomias em relação a fazer cinema enquanto instrumento político na periferia conduzem a uma reflexão carregada de revelações – como o próprio título indica – e de apreensões escatológicas.

Já Senra aposta em algo diferente dos demais, a começar por seu protagonista: o ChatGPT. A partir dos movimentos e ensejos virtuais, o curta discute como seriam universos e combinações genéticas formuladas com o uso da inteligência artificial, o curioso é perceber a miríade de associações e possibilidades presentes. Afinal, como seria um mundo 100% projetado  virtualmente? O que restaria para o ser humano e sua inteligência analógica?

“Virtual Gênesis”, de Arthur B. Senra – Divulgação

São nestas discussões, mergulhos, procuras e questionamentos que se projeta uma linha condutora dentro da Mostra Competitiva de Curtas-metragens Brasileiros; destacando-se o mérito a curadoria que reuniu e fundiu produções distintas, mas que em certo grau se tangenciam para revelar o discurso que atravessa o Brasil no começo desta década. Os filmes se tornam próximos ainda ao buscar empregar linguagens experimentais a fim de localizar a ancestralidade e o espaço de sua representação enquanto elementos determinantes para a pluralidade e polifonia nacional, deste rastreamento seus temas se tornam singulares e despertam novas perspectivas sobre questões já debatidas. Cabe observar, neste percurso, a importância de conhecer suas raizes para assegurar seu lugar no mundo, algo que o cinema vigente nesta Mostra possibilitou enxergar.

*Pâmela Eurídice fez parte do Júri Abraccine.

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