por Regina Behar*

O 19º Fest Aruanda foi realizado na cidade de João Pessoa, Paraíba, entre os dias 5 e 11 de dezembro de 2024. Acompanho esse festival desde a sua primeira edição e, desde então, testemunho o esforço de seu realizador, Lúcio Villar, para manter, ampliar e qualificar esse evento como uma janela para o cinema brasileiro, nordestino e paraibano. Nessa edição, uma das melhores dos últimos anos, também foi incluída uma mostra competitiva internacional; mais uma conquista da gestão de Lúcio Villar e sua equipe.
A qualidade da curadoria de Amilton Pinheiro merece nossos aplausos e resultou na seleção de filmes com grande qualidade estética e técnica, apresentando temas cruciais de nosso tempo presente: a cosmovisão indígena e sua contribuição para pensarmos a degradação ambiental de dimensões planetárias (“A Queda do Céu”); a multiplicidade das identidades de gênero e sexualidade e sua luta por livre expressão (“Baby”, “Rita Não Anda Só”, “Marilak”, “Lua”); questões raciais e de classe em entrecruzamento (“Quem é Essa Mulher?”); as mazelas do etarismo e seus interditos à vida afetiva e sexual (“Ladeira Abaixo”, “Helena de Guaratiba”); os diversos tipos de violência enfrentados pelas meninas e mulheres brasileiras (“Manas”, “Ainda Não é Amanhã”). Destaco o filme “Kasa Branca” por nos apresentar a força da amizade entre jovens negros da periferia enfrentando seu difícil cotidiano. O filme é inovador na forma de mostrar a favela em seu cotidiano comum para além das cenas televisivas trágicas. O cinema negro brasileiro também se destacou nessa edição do festival com a força e a potência de um elenco juvenil, afirmando valores como a amizade e a empatia, abordando com leveza e momentos de humor sem perder a densidade de uma história dolorosa.
Nessa edição do festival admiramos e aplaudimos o cinema feito por mulheres, sobre protagonistas mulheres, dirigidos e/ou produzidos e roteirizados por mulheres. Já há algum tempo esse processo vem se fortalecendo e é com esperança que vemos cada vez mais meninas operando câmeras, som, iluminação também e formando equipes majoritárias nos sets do nosso cinema nacional. O exemplo desse Fest Aruanda em relação à presença de mulheres e a competência artística com que vêm ocupando os mais diversos lugares é uma extraordinária conquista da área de cinema e da sociedade brasileira. Sabemos que essa presença é produto de lutas coletivas delas por expressão de nossa diversidade, por espaço de gênero, por um cinema plural. Essas lutas, são formas de militância individual e coletiva, e por sua persistência e por representarem necessidades sociais, chega o momento em que derrubam muros e alteram paradigmas.
Cada vez mais me convenço da necessidade desse sentido de militância incorporada à paixão pelo cinema (não só pelo cinema, como pela literatura e todas as artes). Sabe-se que já na infância o bichinho da arte pica algumas pessoas, e elas seguem contaminadas por toda a vida, nos deixando o legado de suas paixões que alimentam as nossas. Essa edição, em suas homenagens, deu destaque a um desses personagens incríveis que, para a tristeza geral, partiu de nosso convívio. Vladimir Carvalho nos deixou um pouco antes do evento no qual sempre marcou presença. As homenagens e os depoimentos tocantes de amigos e amigas, de Walter Carvalho, seu irmão, e de pessoas que ele tocou com seu sorriso e sua atenção mostraram que os grandes homens são esses que gostam de gente, que não miram só no sucesso, nem ele lhes sobre à cabeça.
Tenho especial amor e admiração por aquele homem magrinho, sereno e desapegado da fama, mas preocupado com sua arte, com o cinema documental que desvendava os bastidores e realidades ocultas. Seu cinema era extremamente crítico e explicitava as contradições e as injustiças, revelava as desigualdades e questionava o poder. Por sua formação política e ideológica, Vladimir Carvalho era um intelectual orgânico da classe trabalhadora operando na educação e na arte, realizando com maestria seu cinema documental, cheio da nossa identidade, repleto das nossas belezas e misérias e sempre pronto a questionar o status quo. Vladimir Carvalho fez isso com a alma livre e a generosidade dos que sabem que é preciso transformar o mundo e por isso é preciso revelar o oculto, enfrentar o real.
Encerro este texto, com minha homenagem ao cineasta, ao documentarista, ao camarada Vladimir Carvalho, ao bravo militante, ao artista da imagem que enfrentou meio mundo para honrar seus “conterrâneos velhos de guerra”, numa saga que desmontou mitos e fez a conta da miséria produzida pela construção da monumental Brasília. Pela primeira vez, antes mesmo que os historiadores o fizessem, o cinema de Carvalho trouxe para as telas do Brasil a tragédia promovida pelo governo JK contra os trabalhadores nordestinos durante a construção da capital federal. Vladimir Carvalho investigou, filmou, coletou documentos, fez entrevistas; seu filme contesta a História dos vencedores e joga luzes sobre uma a história vista de baixo, pela voz dos sobreviventes que contam dos conterrâneos mortos e desaparecidos. Vladimir ficou feliz com a leitura que fiz dessa obra, em artigo acadêmico. Tomando cafezinho, nos intervalos dos Fest Aruanda, conversávamos sobre História e eu aprendia muito com esse homem que fez história. Partilhávamos a mesma visão de mundo e o sonho de superação do reino da necessidade na direção de uma sociedade mais justa e fraterna. Viva Vladimir Carvalho, sua obra e seu humanismo, sua solidariedade e sua vida iluminada.
*Regina Behar foi presidente do Júri Abraccine no 19º Fest Aruanda