58º Festival de Brasília | A Pele do Ouro: Cinema e sobrevivência na fronteira amazônica

Por Gabriel Pinheiro*

Premiado no 58⁰ Festival de Brasília do Cinema Brasileiro com os troféus Candango de Melhor Fotografia para Daniel Tancredi e de Melhor Roteiro para Patri, Marcela Ulhôa, Tancredi e Yare Perdomo, A Pele do Ouro se afirma como um curta contundente do recente cinema latino-americano. O documentário, dirigido por Marcela Ulhôa e Yare Perdomo, parte dos diários íntimos de Patri, que também assina o roteiro, a narração e a direção de arte. A partir de lembranças da infância na Venezuela e do cotidiano de sobrevivência no garimpo amazônico, o filme constrói um retrato em que a dor pessoal se transforma em linguagem estética, em matéria de criação e denúncia.

Há na condução do olhar uma precisão ética e formal. A fotografia de Tancredi registra e traduz visualmente a precariedade da existência que acompanha a protagonista. O enquadramento é muitas vezes próximo, como se buscasse proteger a personagem, e ao mesmo tempo consciente de que não há proteção possível. A luz, ora quente e mineral, ora fria e opaca, faz da paisagem amazônica uma extensão da própria experiência de Patri, um território em disputa que reflete o sentido instável de lar.

O gesto de Patri ao narrar sua trajetória marcada pelo deslocamento, pela prostituição e pela maternidade é o gesto de quem escreve para permanecer viva. As marcas deixadas pela violência e pelo exílio se tornam também marcas políticas. Em sua história se inscreve a história recente da migração venezuelana, um dos movimentos populacionais mais expressivos e dolorosos do continente nas últimas décadas.

Esse deslocamento em massa é o produto direto de uma crise social e econômica profunda, intensificada sob um governo que se pretende herdeiro do chavismo, mas que dele conserva apenas a retórica. Abandonado o caráter popular do projeto bolivariano, o país foi conduzido à dolarização, à redução de salários, à perseguição de sindicatos e militantes. Um governo que mantém um discurso anti-imperialista ao mesmo tempo em que se reconcilia com o capital estrangeiro e com a burguesia interna. A classe trabalhadora venezuelana se vê sem representação real, empurrada para a migração como única alternativa.

O Brasil, destino imediato de muitos desses deslocados, tampouco cumpre o papel de refúgio. O país que se apresenta ao mundo como modelo de acolhimento oferece na prática campos de espera e gestão da miséria. Nos abrigos de Roraima, denúncias de comida estragada revelam a violência estrutural de um sistema que trata migrantes como números e não como sujeitos.

Nesse contexto, A Pele do Ouro se afirma como um contra-discurso cinematográfico. Ao devolver a palavra à mulher migrante e à trabalhadora do garimpo, o filme cria uma zona de escuta e de visibilidade que as políticas públicas negam. É um documentário que compreende o ato de filmar como gesto político, em que a imagem não explora e sim resiste. Patri tem sua voz, entrecortada por silêncios e pelos ruídos da floresta, compondo uma escrita audiovisual que tensiona a fronteira entre o íntimo e o histórico.

A força do curta fica no encontro entre o pessoal e o coletivo. O que começa como relato de uma vida marcada pela violência se transforma em retrato de uma época, a da América Latina fragmentada entre crises políticas, deslocamentos forçados e um capitalismo extrativista que insiste em converter vidas e territórios em mercadoria.

Ao final, o filme devolve à protagonista a integridade que o mundo lhe negou. Sua fala, escrita a partir de diários, encontra no cinema um lugar de permanência. Um gesto de insurgência poética e política, uma denúncia feita em primeira pessoa e filmada com a escuta atenta de quem sabe que cada voz resgatada do silêncio é também uma forma de resistência. No espelho estilhaçado entre Venezuela e Brasil, Patri é a fronteira e também o território que insiste em existir.

*Gabriel Pinheiro integrou o Júri Abraccine do 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

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