58º Festival de Brasília | Cinema brasileiro – memória e futuro

Por José Geraldo Couto*

O 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi um evento histórico não apenas pela força dos longas e curtas da competição principal, mas também – e talvez principalmente – pela vitalidade de sua programação paralela. É a esta que vou me debruçar brevemente aqui.

Na mostra Caleidoscópio, por exemplo, tivemos alguns dos filmes mais ousados e desconcertantes do festival, do ponto de vista estético e formal. Vamos nos deter em alguns deles.

Com seu título quilométrico e um voraz espírito antropofágico, Uma baleia pode ser dilacerada como uma escola de samba, de Marina Meliande e Felipe Bragança, traz o forte signo da baleia – de Moby Dick e da lenda bíblica de Jonas – para o chão do samba carioca, mas não no grande espetáculo midiático do Carnaval, e sim nas entranhas de uma escola de samba pobre e periférica, conectando sua fábula popular exuberante com a história da caça às baleias na baía da Guanabara.

Com uma abordagem e um estilo totalmente diferentes, mas uma disposição “canibal” análoga, o Nosferatu de Cristiano Burlan desembarca no porto de Santos e perambula por becos e quebradas soturnas de São Paulo, atormentado pela busca de uma atriz e pela maldição de nunca morrer. Num preto e branco expressionista, o filme homenageia e revitaliza o mito literário-cinematográfico do vampiro imergindo-o no bas-fond paulistano, entre alusões shakespearianas, performances teatrais e shows de rock.

O documentário Palco-cama, de Jura Capela, radicaliza a equação vida-arte ao registrar o ator/diretor/pensador Zé Celso em sua cama, refletindo (e atuando) sobre sua própria trajetória e sobre a relação entre o corpo e o teatro. Por sua vez, Atravessa minha carne, de Marcela Borela, explora a fronteira tênue entre cinema e dança, ao filmar o processo criativo da companhia Quasar na criação do espetáculo Por 7 vezes, em Goiânia.

Os críticos e os jovens

Um dos grandes acertos do festival foi o de criar dois júris bem díspares para a mostra Caleidoscópio. Um deles, da Fipresci, foi formado pelo francês Thierry Méranger, a colombiana Valentina Giraldo Sánchez e a brasileira Flávia Guerra, nossa companheira de Abraccine. O outro, um júri jovem, formado por cinco estudantes da UnB. O júri Fipresci premiou Uma baleia… e o júri jovem escolheu Atravessa minha carne.

Ainda mais interessante e ousada foi a iniciativa de levar alunos do ensino médio para assistir no Cine Brasília aos filmes da mostra Caleidoscópio e debatê-los depois com os realizadores. Foram conversas curiosas, divertidas, animadoras. Formação de público, interlocução entre cineastas e espectadores – que propósito pode ser mais nobre do que esse para um festival de cinema?

Memória viva

 A celebração dos 60 anos do festival suscitou várias mostras paralelas que revisitaram momentos e marcos da história do nosso cinema. Uma delas, chamada justamente História(s) do Cinema Brasileiro, trouxe o monumental Relâmpagos de críticas murmúrios de metafísicas, em que, ao longo de duas horas e meia, Julio Bressane monta trechos de 48 filmes realizados no país entre 1898 e 2022, buscando neles centelhas de poesia e invenção.

Os ruminantes, de Tarsila Araújo e Marcelo Mello, conta a história do projeto abortado de Luiz Sergio Person e Jean-Claude Bernardet de adaptar, em 1967, o romance A hora dos ruminantes, de José J. Veiga, lançando luz sobre o contexto cultural e político da época.

 Anti-heróis do udigrudi baiano, de Henrique Dantas, mergulha no movimento do cinema underground surgido na Bahia na virada dos anos 1960 para os 70, que produziu filmes como Meteorango Kid, de André Luiz Oliveira, e Caveira, my friend, de Álvaro Guimarães.

Houve ainda a mostra Clássicos Brasileiros Restaurados, com títulos como Terceiro milênio, de Jorge Bodanzky e Wolf Gauer, e A lenda de Ubirajara, de André Luiz Oliveira, além de curtas da Caravana Farkas, que aliás também foi tema de um documentário essencial, O Nordeste sob a Caravana Farkas, de André Moura Lopes e Arthur Lins, exibido nas Sessões Especiais.

Também nas Sessões Especiais, dois ótimos documentários desvendaram vida e obra de dois de nossos grandes artistas do audiovisual: Para Vigo me voy, de Karen Harley e Lírio Ferreira, sobre Cacá Diegues, e Sérgio Mamberti – Memórias do Brasil, de Evaldo Mocarzel.

Com certeza deixei passar muita coisa, mas já basta para atestar a força e a solidez dessa edição do nosso festival mais antigo e importante.

*José Geraldo Couto integrou o Júri Abraccine do 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

2 comentários sobre “58º Festival de Brasília | Cinema brasileiro – memória e futuro

  1. Pingback: Dossiê 19ª Mostra CineBH | Abraccine - Associação Brasileira de Críticos de Cinema

  2. Pingback: Dossiê 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro | Abraccine - Associação Brasileira de Críticos de Cinema

Deixe um comentário