*Kel Gomes

“Frevo Michiles”, longa-metragem escrito e dirigido por Helder Lopes, foi exibido na noite de abertura do 27º Cine PE e marcou o festival com sua sessão calorosa. Ao subir os créditos, era vibrante a energia do público, em total entrega ao filme, cantando e dançando junto. Também, pudera, o documentário é sobre ninguém menos do que J. Michiles, grande compositor de frevos recifense, cujos 80 anos de vida se misturam à arte da música brasileira, sobretudo à música pernambucana.
Retratar um patrimônio vivo da cultura não é das tarefas mais fáceis, pois há muitos caminhos e recortes possíveis, além do risco de acabar enquadrando o artista em molduras simplistas. Mas com “Frevo Michiles” a sensação que se tem é que nada foi complicado de fazer, pois há total simbiose entre câmera e personagem, entre música e imagem, entre vida e cinema. As belezas e camadas do filme, portanto, podem ser vistas e sentidas por diferentes ângulos, refletindo a grandeza do próprio Michiles.
Nesse sentido, a forma como o filme traz a trajetória de Michiles costurada à história do frevo evidencia como o compositor é um divisor de águas deste movimento, ligado às suas raízes e matrizes, mas com criações inovadoras, atemporais, que vão além de si mesmo, sendo parte importante de um imaginário coletivo e influência para novas gerações e outras vertentes musicais. Afinal, Michiles também é maracatu, coco, forró e mais. Chama a atenção como diferentes temporalidades e nuances se encontram organicamente, retratando entrelaçamentos e histórias nos pequenos detalhes. Arquivos e registros contemporâneos, aliados aos depoimentos e conversas, gestos e palavras (cantadas e faladas), constroem um verdadeiro mosaico afetivo, onde as relações com outras personalidades da música e com gente querida do convívio familiar são incorporadas com delicada cadência.
Ou seja, a aproximação é intimista e o trabalho de montagem, aliado ao design sonoro, faz da narrativa uma experiência sensorial. As rimas não estão somente nas canções, mas no modo como se vê conexões visuais, musicais e conceituais entre um corte e outro. Com isso, se estabelece um trânsito fluido entre a casa e a rua, entre o particular e o popular, a contemplação e a efervescência, a memória e o futuro, contemplando a complexidade de Michiles e suas inspirações. Os planos parecem se orientar pela energia emanada do compositor. Eis um belo encontro entre direção e personagem.
Na noite de premiações e encerramento do festival, a festa se tornou completa: o Júri Abraccine concedeu à “Frevo Michiles” o Prêmio de Melhor Longa e o Júri Oficial lhe agraciou com o Prêmio de Melhor Trilha Sonora. No balanço eletrizante do frevo, que se torna, também, um acalento, “Frevo Michiles” mostra como a vida é arte e a arte é vida. Indissociáveis.

Dessa indissociabilidade, nasce, também, filmes como “Moventes”, de Jefferson Cabral, vencedor do Prêmio Abraccine de Melhor Curta, no 27º Cine PE. Nele, a linguagem cinematográfica serve perfeitamente ao retrato ficcional e poético de uma família potiguar em migração de Natal para São Paulo. O tema diz respeito às vivências e trajetos de incontáveis nordestinos ao longo da história do Brasil, mas também se conecta a questões humanas universais. E, com sensibilidade e sofisticação em cada quadro, o foco é em quem e o quê se deixa para trás, laços e raízes, ausências sentidas e hesitações que parecem infinitas.
“Moventes” fala desse deslocamento e dessa mudança de vida envolvendo o espectador e a espectadora pelo que está na mise-en-scène e pelo que por ela é evocado, incorporando, ainda, elementos de inspiração literária. A partilha da subjetividade tem teor ensaístico e as composições visuais são minimalistas, mas potentes, cuja força imagética está entre o pictórico e o fotográfico. Há, inclusive, o uso de fotos da família para contar a história. Ou seja, um quadro dentro de outro quadro. São molduras que destacam e diferenciam o que é externo e interno, ao mesmo tempo que reverenciam o que foi captado da vida e se tornou protegido, guardado, sendo também compartilhado. Este rigor formal pode, à princípio, parecer um gesto friamente distanciado, mas, pelo contrário, te convida gentilmente à contemplação e à reflexão sobre as cenas como pinturas ou fotografias, em um tempo particular, de tom meditativo, que comove sem pieguices.
O filme transborda afetos familiares sobre esperanças de uma vida melhor, sobre dúvidas, medos e saudades. Também sobre gestos e objetos que são significativos de um modo de vida simples, interiorano, que só é possível ali, naquele lugar, com aquelas pessoas. Um momento específico chama a atenção, quando uma mulher separa o feijão na mesa da cozinha, o que remete à famosa cena de Fernanda Montenegro e Gianfrancesco Guarnieri em “Eles Não Usam Black-Tie” (1981), de Leon Hirszman. É onde se condensa toda uma sensibilidade sobre sonho e seguir em frente, ainda que esteja presente tanta melancolia.
A narrativa se estrutura de maneira a mostrar como a migração dessa família é um processo que acontece aos poucos. Um membro parte sozinho, depois o outro… E além das idas, tem vindas, pois nem sempre as coisas saem como planejado na mudança. A casa de origem vai se tornando um espaço cada vez mais vazio, de uma história que não pôde continuar naquele ambiente porque a busca por outras oportunidades se impôs. Mas no plano em que um clarão adentra pela porta aberta e encontra uma criança, simbolicamente somos lembrados que movimento também é desejo e possibilidade. Apesar das incertezas sobre o que se vê, o caminho sempre está adiante, por diferentes gerações.
*Kel Gomes fez parte do Júri Abraccine.


