VERdeCINE: “Conhecer o Brasil” no Festival Socioambiental de Filmes

por Humberto Silva*

Antes do Prato
“Antes do Prato” – Divulgação

É preciso “conhecer o Brasil” é uma expressão muitas vezes usada para expor os enormes contrastes, a diversidade de um país continental. Com ela também se aponta para as contrastantes e reais possibilidades de se “conhecer o Brasil”. Muitos que poderiam, pois com poder econômico para tal, preferem “conhecer o mundo”; a quem falta poder econômico, resta se confinar aos limites de “um mundo”.

VERdeCINE – Festival Socioambiental de Filmes realiza-se em Lavras, cidade do interior de Minas Gerais. A primeira coisa que me chamou a atenção: um festival de cinema socioambiental; uma segunda coisa que me chamou a atenção: a conexão entre mundos, o mundo de uma cidade do interior e os grandes centros urbanos.

A iniciativa de um festival de cinema com o mote acima, levado a cabo por Cristiane Pederiva e Pedro Michelli, desperta para mim curiosidade pela centralidade do assunto: filmes socioambientais. O que se apresenta com caráter de urgência, então, é um assunto que, para quem vive nas “grandes cidades”, é pauta para a mídia política, grupos militantes, esferas de poder, debates ideologizados e tais.

Com a centralidade do assunto bem marcada, VERdeCINE exibe 18 filmes de diversas partes do Brasil. Proposta de assunto, ousadia e destemor de Pederiva e Michelli não podem ser postos de lado. Há então a percepção de um assunto impulsionador e um trabalho de curadoria para trazer a Lavras filmes representativos num evento da amplitude de um festival de cinema.

O que me chamou bem a atenção foi a dificuldade que Pederiva e Michelli poderiam ter para um festival com o horizonte proposto. Não é o caso para mim, considerando claro onde ponho a régua, tratar o trabalho de curadoria pelos aspectos formais, ou estéticos, na escolha dos filmes exibidos. Uma expectativa assim, penso, seria inoportuna e em grande parte desnecessária.

Na primeira noite do festival, em 6 de junho, o que vi não provocou em mim qualquer preocupação de apreciação formal, ou estética, que seja; mas despertou, sim o sentimento do quanto questões de fundo no país nos escapam em fitas feitas com um profundo sentido de verdade interior. “Grão”, direção, roteiro e montagem de Adriana Miranda, e “Cabeça de Fogo”, direção de Lidiana Reis, me impressionaram pela sinceridade dos relatos e por mostrarem uma realidade que não se vê todos os dias nas grandes cidades.

Esses dois curtas exibiram, em poucos minutos, experiências que nos fazem ver como nos falta “conhecer o Brasil”. Nós, claro, da cidade no que se opõe ao campo. Claro, portanto, que uma escrita assim assume uma feição um tanto moralista. No fundo, o quadro não é tão esquemático assim; o que de algum modo se pode ver no longa que vi ontem: “Antes do Prato”, dirigido por Carol Quintanilha.

Um tanto moralista porque não se dirige propriamente a quem efetivamente poderia, mas prefere “conhecer o mundo” ao Brasil; e em igual medida, mesmo que alcançasse, o que seria praticamente impossível, o que escrevo não teria qualquer efeito em quem por ventura mesmo querendo não teria como “conhecer o Brasil”.

O cinema, os filmes, nesse ponto, e sua enorme importância. Exibir uma face de um país para a qual muitos viram as costas – sendo que para a maioria só por meio de imagens há algo além do que se pode ver. Por isso, fica a matutar como além do festival esses filmes circularão? Como filmes como “Grão” e “Cabeça de Fogo” serão vistos? Ou, como poderiam, e entendo até, deveriam ser vistos?

No plano tão somente ideal, fico a matutar que escolas dos ensinos fundamental e médio poderiam, com o enorme tempo “ocioso” em games e redes sociais, reservar tempo para “Grão” e “Cabeça de Fogo”. Claro, claro, acordo. Só minha infinda ingenuidade para conceber coisas assim. Nisso, o outro lado do que me chama atenção no festival, a conexão entre mundos, que teve entre os filmes que vi ontem, “Antes do Prato”, o nó que creio vale realçar.

Em “Antes do prato” há para mim uma frase lapidar, proferida pela cozinheira e escritora argentina Paola Carosella: “o agronegócio é commodities”. Lapidar, resume a separação entre negócio, mercado, investimento… e, de outro lado, comida, alimento, fome. Em “Antes do Prato”, justamente por isso, as vantagens e desvantagens de conexão entre mundos; e nisso, o sinuoso movimento para se “conhecer o Brasil”.

O agronegócio é o moderno, o futuro, o estreitamento de fronteiras entre a cidade e o campo. Um avião para se servir de táxi, e campo e cidade se conectam. Adeus ao arcaico, à agricultura de antigamente: velha, ultrapassada, sinônimo de atraso. Ocorre que, esse o nó, o campo, a comida, o alimento são praticamente inimigos do agro.

A conexão entre mundos é apenas uma miragem. De algum modo, para o agro, o Brasil é objeto de especulação no mercado. Brasil que por sua vez pode ser incômodo quando se tem se enfrentar sua face real em movimentos como o MST. Antes do Prato” exibe a impossibilidade de comunhão na mesma medida que “conhecer o Brasil” implica separar mundos que em princípio estariam num mesmo mundo: o campo.

A expressão “conhecer o Brasil” é traiçoeira: escapar ao viés folclórico ou ao exótico implicar caminhar num fio tênue. O mundo moderno com ele o agro seduz, instiga o consumo, atiça pulsões fetichistas. O capitalismo, com ele o agro, sabe bem isso. O aparelho celular talvez seja o signum mais exasperador dessa incontrolável ausência de fronteiras.

Contudo, daí a importância de um festival como VERdeCINE e ver um filme como “Antes do Prato”. A conexão entre mundos não é miragem. Conhecer o Brasil é um movimento de mão dupla. Por isso, a expressão é traiçoeira. Não há como hoje o campo se afastar totalmente do moderno, nem isso é possível. O desafio então é o que extrair do moderno sem se deixar contaminar pelo fetiche. 

Movimento de mão dupla, filmes como exibidos na programação do VERdeCINE sinalizam como a fim de se “conhecer o Brasil”, assuntos como campo, comida, alimento, fome são mais que referentes, são bandeiras frente ao outro lado da trincheira, o lado em que se encontra o agronegócio, em que o alimento é tão só moeda, especulação, commodities, enfim. A fome, nesse sentido, é sentida por quem tem fome. Redundância das redundâncias. Pois, é apenas palavra que eventualmente incomoda quem paga as contas com o agro.

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Uma nota: no cruzamento de uma grande cidade como São Paulo, alguém segura uma placa de papelão com a palavra “FOME”; nesse mesmo cruzamento, uma padaria…

*Humberto Silva é associado à Abraccine e cobre o VERdeCINE a convite do festival.

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