1º Prêmio ABRACCINE: um dossiê.

Após a divulgação dos escolhidos como os melhores do ano, o blog da ABRACCINE – Associação Brasileira dos Críticos de Cinema disponibiliza algumas matérias e críticas relativas aos três premiados, feitas e publicadas em outros momentos por alguns dos críticos que participaram da votação. Material que, visto em conjunto, possibilita: entender um pouco mais criteriosamente as razões que levaram aos resultados; e justificar de forma mais embasada as escolhas, em uma associação que tem como “força motriz” a discussão e a análise detalhada de obras de cinema. Os textos são de diversas origens e não representam a escolha final (na votação) de cada um de seus autores.

 

Melhor Longa-Metragem Nacional: TRANSEUNTE, de Eryk Rocha

Crítica de Adalberto Meireles (Blog Ponto de Cinema 24/08/2011)

É difícil encontrar algo tão contundente no cinema nacional, hoje, quanto Transeunte, o filme de Eryk Rocha exibido na noite de terça-feira na mostra competitiva do Panorama Internacional Coisa de Cinema, que ganhou três prêmios no último Festival de Brasília: melhor ator (para Fernando Bezerra), som e o da crítica, além de ser eleito pelo público e receber uma menção honrosa também da crítica no Festival Latino-Americano.

Mas Transeunte deveria receber outros e outros prêmios em Brasília, inclusive o de melhor filme e fotografia, porque é um trabalho de fôlego que impacta, descola-se de um mero exercício formal (que pretende ser e o é com sinceridade) de ficção com ares de documentário, para cravar no fundo da solidão humana o espírito libertado da angústia, enfim, impregnado de vida, ao falar de um aposentado em um vagar pelas ruas da cidade.

Parece que ele está no apagar das luzes. De passagem. E isso, é claro, não vale apenas para Expedito, mas são todos transeuntes aqueles com quem ele cruza e nós. O senhor de 65 anos de idade interpretado por Fernando Bezerra vive sozinho, silenciosamente. É só andar em um vaivém de sons, barulho de obras, de buzinas, de carros, de vozes do rádio que escuta pelo fone de ouvido. Não tem mais a mãe, é visitado apenas no aniversário pela sobrinha, e no rosto exibe o retrato marcado.

Enquanto ele se desloca, Eryk Rocha transita também sob um verniz, expondo aquela marca encarnada que é o aposentado investigado no poro, revelado pelos grãos expostos da luz de Miguel Vassy. Taí um filme que seria outro se não fosse em preto e branco e em certo sentido não parecesse um Bergman, um Dreyer, que, até onde eu posso chegar, foram eles os que melhor se armaram do formão para moldar o gesto e a fala, mas, sobretudo, investigar o personagem na alma.

A câmera de Vassy é isso – um formão que esculpe o retrato de Expedito e revela o sulco, o sentimento aparente no rosto sério, pétreo, sisudo. Aqui eu me lembro da admirável interpretação de Henry Fonda no papel do baterista Manny Balestrero, o honrado pai de família de O Homem Errado, de Alfred Hitchcock, que tem a vida revirada ao avesso ao ser confundido com um assaltante que na realidade é seu sósia.

Isso, o rosto de um corpo também revelado no detalhe de partes – das mãos, do peito, do dorso na hora do sexo. No detalhe dos pés e pernas cansadas, sob a água do banho que escorre, a câmera de Vassy é a textura e o suporte para a revelação desse sentimento captado por Eryk, que escuta a dor, ouve as queixas, espreita o sono e o ronco para, enfim, devolver a Expedito o riso, iluminar.

Assim como Drummond, Expedito poderia perguntar por que marcha. Mas prefere dizer, com Fernando Catatau, que é “aquele que aguenta pois espera para amar”. Sublime, mesmo, o personagem cantando os “passos solitários no salão” e deixando a cena, enquanto a câmera se afasta para um corte, agora sem som, no vazio, entre colunas. Expedito vai para onde?


Crítica de Alysson  Oliveira (Cineweb 08/08/2011)

Enquanto muitos filmes obrigam você a olhar a tela e sujam com imagens e elementos desnecessários, Eryk Rocha pede que você ouça com atenção. Em sua primeira ficção, Transeunte, o cineasta faz de um delicado trabalho de som, combinado com a atuação contida do protagonista, Fernando Bezerra, e o despojamento narrativo, um filme que merece ser descoberto.

Expedito (Bezerra) é uma figura solitária cuja vida grita silenciosamente no desespero de não ser vivida em vão. Ele acaba de se aposentar e perdeu a mãe, com quem sempre viveu. Solteiro e sem filhos, é na sobrinha (Bia Morelli), que o visita no aniversário, que ele tem o único vínculo com outra pessoas. Aqueles que cruzam seu caminho são apenas isso: desconhecidos.

A jornada de Expedito no filme, roteirizado por Eryk e Manuela Dias, é um périplo que se fecha onde começou. Às vezes, o que importa não é onde se chega, mas a jornada em si. E esse é o caso de Transeunte, no qual o protagonista muda um pouco a cada novo contato aleatório em seu caminho: uma mãe que leva o filho para comer num bar ou uma pessoa que canta numa roda de samba. De todos eles, um parece ressoar mais forte no personagem: um casal que discute por conta da mãe do rapaz, e a briga termina com ela dizendo “você deveria ter se casado com sua mãe”.

A câmera de Eryk capta com sensibilidade essa vida tão interiorizada para a qual qualquer contato com o mundo exterior pode significar uma ruptura. São descobertas – muitas delas tardias – que representam para o personagem as possibilidades daquilo que ainda está por vir. Não há uma sensação de desperdício, nem da busca do tempo perdido. O que Expedito transmite é a urgência – mas, de certa forma, nada muito apressado – de viver o seu tempo. Aos poucos, o personagem parece se encontrar no mundo, criando uma nova rotina, estabelecendo seu novo caminho – sem a mãe e sem seu emprego.

A fotografia, assinada por Miguel Vassy, é em preto e branco, o que transforma a história de Expedito em atemporal. O centro do Rio de Janeiro e seus transeuntes – dentre os quais o personagem é mais um – é um personagem central. Mas o longa passa longe do Rio cartão postal. O Rio que aqui vemos é aquele quase esquecido. Um lugar é especial para o filme, um bar próximo à Praça Tiradentes.

Já o desenho de som, de Edson Secco, é uma força invisível e, ainda assim, muito presente no filme. Tal qual o espanhol 
Na cidade de Silvia
, o som representa mais do que o ruído, é a materialização dos pensamentos, desejos e anseios. É a forma de expressão mais pungente dos personagens centrais ou meros transeuntes, cujo ruído dos passos é a marca mais forte que fica. Assim, “Transeunte” é um filme que se vale do som para lidar com as possibilidades da linguagem cinematográfica.

O longa recebeu três troféus no Festival de Brasília do ano passado: prêmio da crítica, ator e som.

Matéria de Alysson Oliveira (Cineweb 16/08/2011)

Quando vai falar de seu novo filme, Transeunte, o cineasta Eryk Rocha cita Godard. “É um filme sobre a ‘solidão povoada’”, como dizia o cineasta francês. Mas não se engane, a citação não quer dizer influencia. Aos 33 anos, o jovem diretor faz seu primeiro longa de ficção, e, segundo ele, ‘surgiu naturalmente, da necessidade de experimentar outras possibilidades do cinema’.

Com curtas e documentários e seu currículo, Eryk confessa que sempre estranhou a cobrança de quando faria uma ficção. “As pessoas ficavam perguntando ‘quando eu faria o meu primeiro filme’. Como assim? Eu já tenho vários filmes, são documentários, mas são filmes. Há um certo menosprezo com quem só faz documentário”. Não que ele se importasse com isso, pois esta muito feliz com os rumos que sua carreira tomou, mas sua experiência na direção do DVD do espetáculo de José Celso Martinez Correa Os Sertões – na qual usou mais de dez câmeras para captar diversos ângulos da peça – despertou uma certa curiosidade em trilhar o caminho da ficção.

Transeunte, que lhe rendeu prêmio de direção no Festival de Brasília do ano passado, não é um filme sobre um homem solitário, explica o diretor que coassina o roteiro com Manuela Dias. “É um filme com um homem solitário. Assim como é com o Rio de Janeiro, não sobre, nem na cidade. “ Ao centro está Expedito, sexagenário que acaba de se aposentar e perder a mãe,e , por isso, procura novos rumos para sua vida. Para planejar o filme, ele, a corroteirista e o diretor de fotografia, Miguel Vassy, passaram um ano andando pelo Rio, fazendo o trajeto do personagem, pesquisando lugares, pessoas e fatos que pudessem ser incorporados ao longa. “O acaso se torna tão importante quanto aquilo que está ao centro da história”. O centro do Rio, segundo ele, é um lugar onde diversos tempos coexistem. “É passado, presente. Tudo está na arquitetura, nas pessoas”.

Desde o início, ele e Vassy pensaram num filme em preto e branco. “As luzes dos trópicos são duras. A cidade contrasta com a dureza da vida”, explica o diretor de fotografia que conheceu Eryk quando estudavam em Cuba, e juntos fizeram filmes como Rocha que voa. Eryk explica que Transeunte nasceu em 2004, quando ele estava no Festival de Cannes com o curta Quimera.

Para Eryk, porém, tão importante quanto a imagem no filme é o som. “O som é o aspecto mais físico da linguagem do cinema, é aquele que toca o público. Do roteiro, surgiu a potencia de abusar da sonoridade do filme. O personagem está sempre ouvindo rádio, há a seresta num bar perto da casa dele”.

Segundo Ava Gaitán Rocha, irmã de Eryk e montadora do filme, “a imagem e o som são inseparáveis. Montar Transeunte foi um trabalho de reinvenção. Tínhamos mais de 30 horas de filmagens, e foi um processo de eterna descoberta das possibilidades que estavam ali para essa história”. Além disso, ela, que também é música, assina uma das canções do filme, além de a cantar.

Durante sua pesquisa pela cidade do Rio de Janeiro, Eryk encontrou, por indicação de um amigo, um grupo de seresteiros que se reúnem todas as quintas-feiras, e os incorporou ao filme. “No início, imaginamos o protagonista indo a um karaokê, mas, depois, percebemos como seria melhor termos os seresteiros. Até porque, encontramos muitos Expeditos naquele grupo”, confessa o diretor.

Para encontrar o ator que daria vida a Expedito, Eryk teve de fazer diversos testes até que chegou a Fernando Bezerra, por sugestão de Walter Salles, produtor do longa, que havia o dirigido em Linha de Passe. “Eu mesmo fazia os testes, e quando o vi pela câmera percebi que ele tinha aquela luz que eu procurava para o personagem. Não tinha como ser outro ator”.

Bezerra conta também que para criar seu personagem, com a ajuda de Eryk e Manuela, criou uma vida pregressa para Expedito, coisas que não estão na tela, mas que o ajudaram a entender quem é esse homem. “Foi importante saber quem é ele, o que ele viveu até aqui para entender por que a vida dele e ele são como são”.

Para Bezerra trabalhar com Eryk foi a concretização de um sonho. “Eu queria muito trabalhar com o pai dele [Glauber Rocha], mas nunca pude. Um dia, por acaso, ele comentou sobre o pai, e eu nem sabia de quem o Eryk era filho. Foi uma surpresa quando ele me falou que é filho do Glauber. “

Aliás, quando o assunto é Glauber, Eryk confessa que não vê semelhanças diretas entre o cinema dos dois, mas é sua irmã que aponta a maior delas: “a maior herança que ele tem é o rigor e a coragem. O Eryk está armado dessa força. O Glauber fazia e o Eryk faz cinema de mestre artesão”.

Crítica de Celso Sabadin (Cineclick 08/08/2011)

Transeunte é o primeiro longa de ficção de Eryk Rocha, filho do famoso Glauber. Impossível não usar o aposto. Mesmo porque a inquietação, o inconformismo e a veia criativa parecem estar no DNA do cineasta. Totalmente rodado num belíssimo preto e branco, Transeunte narra o cotidiano de Expedito (Fernando Bezerra, ótimo), um homem solitário que vive seus primeiros dias de aposentadoria num antigo e pequeno apartamento no centro do Rio de Janeiro.

A câmera de Rocha acompanha Expedito contemplativa, lenta e silenciosamente. O público é convidado a mergulhar no universo deste protagonista que tem um tempo totalmente próprio, isolado do ritmo da cidade grande que, mais que o rodear, o cerca.

Contrariamente ao significado de seu próprio nome, Expedito não tem pressa. O filme também não. De sua janela ele observa uma gigantesca, barulhenta e poeirenta obra que resultará em três empreendimentos imobiliários. Ele nem liga. Ou diz não ligar. Caminha longamente pelas ruas ouvindo trechos de conversas alheias, fragmentos de programas populares de rádio e deliciosas músicas de dor de cotovelo que divide com cantores anônimos num pequeno sarau noturno promovido por um acolhedor boteco. Para onde vai Expedito? Para onde vai o filme?

O público que se propuser a viajar na proposta intimista de Eryk será brindado com uma belíssima obra cinematográfica de grandes planos, bela fotografia do franco-uruguaio Miguel Vassy (fotógrafo também de Waldick, Sempre no Meu Coração) e um nada menos que genial trabalho de trilha sonora (do cearense Fernando Catatau), elemento fundamental dentro da própria dramaturgia do filme.

Transeunte vem conquistando o público nos festivais por onde passa. Merecidamente: o filme é Cinema na verdadeira e maior acepção da palavra

 

Crítica de Cid Nader (Cinequanon 11/2010)

Eryk Rocha começou sua carreira lá trás com Rocha que Voa (2002) de maneira estranha, por querer ser reverencial demais ao pai (Glauber), o que resultou um documentário um tanto falso em suas tentativas de ousadia. O tempo passa, Intervalo Clandestino (2006) e Pachamama (2008) no meio do caminho e ele finalmente resolve dar um salto mudando de direção para criar seu primeiro filme de ficção.

Eryk, nessa mudança, ganhou evidente estofo nas manipulações das imagens, e no que fez com elas na edição, pois mesmo entendo-se o trabalho como mais um possível exercício de estilo (algo ostensivamente nutrido em sua filmografia anterior), dessa vez fica a certeza total de que tal exercício não superou a verdade de uma história contada, fazendo com que esse quesito técnico trabalhasse em favor de um filme (que se completa sempre quando há razões para atos e tentativas formalistas excessivas ou glamorosas a mais).

Muito mais: as imagens e suas disposições, na realidade, se revelaram “o filme”, o modo de construção da história, o caminho narrativo optado como o revelador do que viria ser lentamente contado (abdicou da necessidade das explicações sonoras – ou outras – para deixar com que a sequência dos dados por imagens se encarregasse de tal procedimento). Na realidade, com essa atitude de elogio ao filmado, resgata uma das essências do nascedouro da arte que é a constituição dela somente pelo acúmulo e bom trabalho com as imagens, deixando para os “inter-títulos” o papel de mero complementador de pequenas necessidades (nesse caso, os poucos diálogos ou as músicas cantadas nas serestas).

Quando o filme começa, uma longa sequência (diria, de um 30 minutos) onde o transeunte do título (o aposentado Expedito – interpretado por Fernando Bezerra) passeia ou observa a cidade do Rio de Janeiro entregando à telona imagens muito bem captadas (com PB e granulação pensados), um certo receio de que, novamente, um trabalho focado “somente” em exercício de estilo e “qualidade superior” poderia estar dando continuidade “normal” à sua carreira me incomodou. Mas nada como a paciência exercida para o bom acompanhamento do cinema. O que segue torna Transeunte, no mínimo, algo a ser muito elogiado (para não cairmos na facilidade de dizê-lo como, “imprescindível”).

Com o tempo, com Expedito passando a ouvir conversas conexas e mesmo passando a emitir poucas palavras – quando vai pegar sua primeira aposentadoria e tem de falar o nome da mãe –, o filme de imagens passa a “explicar” mais a potência e qualidade delas, organizando a mente do espectador de forma interessante (por processos pouco comuns), para revelar que temos na tela um ser isolado, que foge um pouco da vida, tem medo de reviver, cultua a esposa falecida, e frequenta – aparentemente somente por prazer comum (ledo engano, já que tal lugar é o ápice do fechamento da compreensão do personagem de sua sina) – um local de serestas como maior modo de aproximação dos outros.

Percebe-se, com o tempo e tal acúmulo de imagens, o momento em que começa a romper seu auto-isolamento, com algumas atitudes revelando por atos que páginas estão sendo viradas em sua vida (quando ouve a discussão entre um
casal e resolve colocar o fone de ouvido; ou quando busca os olhares de mulheres mais jovens; e, de forma bem mais importante, quando resolve comprar um par de óculos escuros). Um momento, num ossuário, é extremamente belo e significativo em seu longo percurso, e o que parece, a princípio, um equívoco – quando várias possibilidades de final se insinuam, mas são desprezadas -, acaba por parecer equívoco menor (talvez até escolha consciente) diante do momento mais bonito do filme, que ocorre no local das serestas: momento libertador e que faz com que todas as peças se juntem. Belo – e, principalmente, corajoso – salto acima de Eryk.

P.S.: de toda forma, há novamente uma evidente homenagem ao pai na cena do pastor pregando no meio da rua.

Crítica de Filipe Furtado (Cinética 01/2011)

Riscado e Transeunte são dois genuínos filmes de personagem, que retiram toda a sua potência das relações que estabelecem com eles. Riscado acompanha uma atriz que lida com uma série de questões financeiras e profissionais enquanto ganha uma grande oportunidade de trabalho. Já Transeunte acompanha um viúvo sem vida e sua relação de distância e curiosidade desinteressada com o mundo. São dois filmes calcados nos seus atores principais, KarineTelles e Fernando Bezerra respectivamente, e no que eles emprestam a seus respectivos cineastas (a alegria encantadora de Telles, a carranca constante de Bezerra). São também filmes com opções de aproximação opostas: Transeunte é um filme bastante agressivo nas suas opções visuais, do trabalho de câmera e montagem ao uso de preto e branco e de música; já Riscado busca uma abordagem afetuosa através do seu elenco e de um ótimo trabalho com locações e direção de arte.

Transeunte parte do apagamento completo do seu personagem até que ele preencha aos poucos os fotogramas. Seu processo é de dar forma a um tecido morto. O próprio filme nasce morto, e aos poucos ganha vida. É uma proposta radical que confere a Transeunte considerável irregularidade que nem sempre

supera. O tom inquieto das imagens sugere no começo do filme uma tentativa de compensar a si próprio. Seu jogo com a cidade ecoa com interesse somente em momentos isolados. Quando Bezerra vai à seresta e é reanimado, e se torna finalmente um corpo que se move com direção, Transeunte encontra um sentido maior, mesmo que suas opções sigam rigorosamente as mesmas. O filme tem seus momentos mais felizes justamente quando as imagens de Rocha vêm acompanhadas da trilha sonora, reconfirmando como a proposta toda do filme passa por uma lógica de preenchimento de cena.Transeunte tem a virtude de levar seu projeto com completa convicção, mas é também prisioneiro dele; dentro desta prisão estética, é inegável que encontre alguns momentos de grande força.

Crítica de João Carlos Sampaio (publicado em A Tarde, 26/08/2011).

O extraordinário que emerge do cotidiano é o assunto de Transeunte, quarto longa-metragem de Eryk Rocha e também o seu primeiro filme de ficção. Para este début, o diretor, filho de Glauber Rocha, escolheu contar a história de Expedito, um homem que experimenta os seus primeiros dias como aposentado. Um tipo comum, que ganha o papel de herói desta fita.

O ator Fernando Bezerra dá carne, osso e voz a este personagem, que fica quase o tempo inteiro mudo em cena, dizendo algo de si apenas quando interpelado. O filme mostra esta figura a partir de uma progressiva contemplação, numa tentativa de fazer o espectador olhar e descobrir por si mesmo, ver este tipo de gente que parece invisível, que não nos importa, mesmo que tenham suas dores e glórias, sempre relevadas pela coletividade.

Desde o cartaz do filme que traz um superclose do rosto de Fernando/Expedito a opção aqui é mostrar esta vida, que se vê livre das horas, das obrigações diárias e tem de se reinventar, descobrir o seu novo papel no mundo. Por isto caminha pelas ruas cariocas sem rumo certo, com um ar de quem não sabe o que busca, ou ainda, como quem deambula por não saber como ocupar o tempo.

As providências para receber os vencimentos ou o encontro frio na emblemática cena da comemoração de um aniversário quer dizer apenas que Expedito já não tem ninguém ou nada. Melhor, ele tem suas memórias, a lembrança da mãe, da esposa ou do tempo em que se sentiu amado, quando não parecia tão emergente a ameaça da verdadeira morte, a de ser esquecido com o findar dos seus dias.

A opção pelas imagens em preto e branco acentua o cinza do tempo presente do personagem, sua sensação de ter permanecido, sem saber, no passado. Só que, ao mesmo tempo em que o filme sublinha a solidão de Expedito, também mostra que ele está em movimento. Mexer-se, como faz tudo que está vivo, é a esperança (no sentido de porvir mesmo!) de que algo pode acontecer, que o acaso possa dar sentido a sua vida.

Um encontro, uma vivência ou quem sabe a experimentação do transbordamento dos limites humanos que a arte promove – no caso específico do personagem, por via da música – pode ser o alento que ele precisa. Por este caminho, Transeunte, apesar de apresentar um quase vencido, não é um filme amargurado, porque tem fé, porque se move.

Até que o caminho de Expedito se complete, o espectador vai conhecendo mais profundamente este homem, sempre intermediado por seu imaginário. O rádio inseparável, pontuando com canções e notícias o seu dia, vai tornando a sua presença cada vez mais visível. Sendo a economia de gestos e a própria força do tipo de Fernando Bezerra fundamentais para se acreditar nesta história, para se envolver com esta figura, tão comum.

Se em Rocha que Voa (2002), Eryk fuçou as memórias do pai, e em Pachamama (2009) percorreu a geografia de suas
origens no continente sulamericano (é filho da artista colombiana Paula Gaitán), em Transeunte une os temas de seus dois filmes anteriores, o espaço e o tempo, mãe e pai.

Expedito é Eryk e é também qualquer um de nós naquele momento que se sente o fardo dos dias e a angústia da falta de afeto. Ele, Eryk, fala-nos disto como quem segreda ao ouvido, um cochicho sobre este medo, o de todos nós, diante da dor do desaparecimento no anonimato, pois se na morte estamos sozinhos, o maior dos infortúnios é estar assim, como se mortos, ainda vivos.

Crítica de Luiz Joaquim (Cinema Escrito 27/11/2011)

São muito fortes os contrastes temáticos dos dois primeiros longas-metragens exibidos em competição, ambos de ficção, aqui neste 43º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (crítica feita durante o evento). Enquanto Transeunte, de Eryk Rocha, mostrado quinta-feira, segue os passos do solitário e melancólico sexagenário Expedito (Fernando Bezerra) pelas ruas do Rio de Janeiro, A Alegria, de Felipe Bragança e Marina Meliande, exibido um dia antes, concentra-se em quatro adolescentes, também no Rio. O foco maior está em Luiza (Tainá Medina, a não-atriz de 16 anos) que se esforça para mostrar que tem uma razão para ser alegre, mesmo num momento crucial, que é o da perda da inocência em confronto com a realidade, por vezes violenta.

Curioso que, o que há de rigor na construção de Expedito – seja pelo roteiro de dois anos feito por Rocha e Manuela Dias, seja pelo desempenho extraordinário de Bezerra -, há de rigor nos enquadramentos e tratamento visual pensado para A Alegria. Já a fotografia de Transeunte, com um contrastante preto e branco feito pelo uruguaio Miguel Vassy, privilegia os ‘pedaços’ do corpo do velho Expedito. Da junção dessas partes, resulta os 120 minutos do filme, e conhecemos o seu todo.

Com três documentários no currículo, Eryk não negou aqui seu interesse pela tom de urgência que definem as imagens documentais. A câmera de Vassy é quase microscópica, e tem o poder de redefinir as formas exatamente por essa proximidade. A grade de um elevador, a borda de um prato, ou as colunas do metrô ganham outros sentidos. Nesse aspecto, o rosto (e o corpo) de Expedito passa, assim, a ser a paisagem mais importante do filme.

Perguntamos o que interessava em Eryk, 32 anos, abordar, em sua primeira ficção (na verdade, o primeiro longa de ficção de um descendente de Glauber Rocha), a história de um homem de 65 anos, que não tem filhos, perdeu a mãe e a mulher que amava, e passa os apenas a observar o mundo. Sem conseguiu responder com exatidão, Eryk acredita que a resposta possa estar mais no seu inconsciente, que sofreu perdas fortes como a do pai e dos dois avôs. 

“De qualquer forma, eu me perguntava o que marcaria a passagem de um homem assim pelo mundo. Quem iria lembrar dessa pessoa depois que ela se fosse? Achei que fazer um filme seria uma boa forma de registrar sua existência”, resumiu, em consonância com Fernando Bezerra, que é já um forte candidato ao troféu Candango de melhor ator.

Duas informações: o baiano Bezerra atuou em vários filmes, três deles sob direção de Hermanno Penna, incluindo Sargento Getúlio. Era o sujeito que apanhava de Lima Duarte o tempo todo. Seu penúltimo filme foi Linha de Passe de Walter Salles, produtor deste atual Transeunte.

Matéria de Marcelo Miranda (O Tempo 27/11/2011)

Brasília. Antes mesmo de tomar consciência do mundo, Eryk Rocha era um inquieto. Nasceu em Brasília em 1978, quando o pai, Glauber Rocha, filmava A Idade da Terra, seu filme derradeiro. Viveu na Europa até os 15 anos, ficou na Colômbia (país da mãe, a videoartista Paula Gaitán) até os 20, estudou cinema em Cuba e hoje reside no Rio de Janeiro, sua autêntica terra natal, no corpo e na alma. Não é coincidência, portanto, que os filmes de Eryk trafeguem pela geografia, espaço e tempo – ora buscando memórias do passado (Rocha que Voa), outras captando o presente (Intervalo Clandestino) e algumas revirando conceitos e lugares (Pachamama).

Menos surpreendente ainda é Eryk estrear na ficção com um filme denominado Transeunte.

Exibido na segunda noite de competição do 43º Festival de Brasília, na noite de quinta-feira – em sessão dedicada por Eryk à mãe e “ao meu pai, Glauber” -, o trabalho provocou impacto excepcional na plateia e nos críticos e jornalistas. Apesar de se assumir como relato fictício, o longa-metragem é construído a partir do contato do protagonista – um recém-aposentado de 65 anos chamado Expedito – com a realidade, a urbanidade, os tipos que circulam por calçadas, ruas, avenidas e estabelecimentos comerciais ou de entretenimento.

A fagulha para Transeunte surgiu quando Eryk estava no Festival de Cannes, em maio de 2004, quando lá exibiu o curta-metragem Quimera. Olhando ao redor, naquele dia a dia abarrotado de celebridades, câmeras, fotógrafos e glamour, o diretor pensou num contraponto. “Eu era um completo anônimo ali. Então me veio essa imagem, a de um homem que ninguém conhece: se ele morre, quem vai contar sobre sua passagem no mundo?”.

A questão perseguiu Eryk Rocha durante os esboços de argumento rabiscados nos dias posteriores. Após entraves típicos da escrita, convidou a roteirista Manuela Dias para colaborar no script. “Me convenci de que, se existia algo possível de registrar o caminho de um homem como esse, no sentido de materializar a sua existência, esse algo seria o cinema”.

Ao longo dos anos, Eryk foi aprimorando o argumento e decidiu que, para ser honesto com sua própria origem de documentarista, precisaria incorporar elementos do real ao recorte ficcional. Não que tenha sido pensado assim tão claramente: para o diretor, o trânsito entre um e outro é não apenas natural, mas enriquecido pela própria confusão que isso pode gerar. “Na sessão aqui em Brasília, dois espectadores me procuraram querendo saber se o filme era mesmo uma ficção ou se era um documentário sobre aquele personagem. Eu não podia querer um retorno melhor que esse”, exalta.

A escolha pela fotografia em preto-e-branco também se deveu a uma escolha estética. “Desde aquela imagem inicial do homem desconhecido, tudo o que pensei era em preto e branco. Nunca cogitei que o filme fosse colorido”.

Em Transeunte, Expedito (vivido pelo ator baiano Fernando Bezerra), homem de poucas – ou nenhuma – palavras, circula pelas ruas do Rio de Janeiro sem qualquer tipo de perspectiva ou ambição. Mora sozinho num apartamento, não se incomoda com a barulhenta construção em frente, apenas fala de si quando perguntado por outros e parece só ter como ente querido a memória de uma mulher (sua mãe ou esposa, algo que o filme propositadamente confunde).

Num dia comum, ele descobre as maravilhas de um rádio de pilha, o qual carrega para todo lado. Esse rádio – e as músicas e notícias que saem dele – passam a servir de “voz interior” de Expedito, como define Eryk Rocha. “O que ele escuta faz comentários do que ele vê. Eu queria que o radinho de pilha fosse um momento de virada para esse homem”, comenta Eryk.

Crítica de Orlando Margarido (Carta Capital 13/08/2011)

Numa apreciação mais imediata, Transeunte é um filme sobre a velhice feito por quem está distante dela. Mas não deixa de ser um dos elementos mais significativos para Eryk Rocha na elaboração de seu primeiro longa de ficção. Há um peso a se levar em conta quando alguém carrega a herança de um artista influente como Glauber Rocha, relação essa da qual o diretor de 33 anos trata em documentários como Rocha Que Voa, em linha direta com a produção do pai. A perda deste muito cedo para o cinema brasileiro e, claro, para Eryk, assim como a morte do avô quando criança, teriam impacto determinante para ele, segundo explicou. Mas não apenas isso, como se poderá medir a partir de sexta 12 em um trabalho apurado, delicado e de rara abordagem para um tema que facilmente desbancaria na autopiedade e comiseração.

Esse olhar jovem, mas não complacente de Eryk, dirige-se a um personagem trivial nas grandes metrópoles. Expedito (o ótimo Fernando Bezerra, ator de teatro) é um aposentado na casa dos 60 anos, solitário e metódico. Seu cotidiano não vai além de lentas caminhadas pela cidade do Rio de Janeiro ou de contemplar pela janela do pequeno apartamento um canteiro de obras que se impõe à sua frente, portanto, no
revés de seu nome. O diretor capta num preto e branco rigoroso primeiro os detalhes para caracterizar o protagonista, closes que buscam com insistência suas rugas aos sons da metrópole. Aos poucos, depois de um processo de luto, o universo de Expedito abre-se novamente para a vida, estimulado pelo sexo, futebol e pelas rodas de samba, na mesma medida em que a câmera amplia seu contexto. Aqui também estão as influências cinematográficas de Eryk, que podem abarcar desde um cinema paulista como de Rubem Biáfora e seu O Quarto, até o universal, de Antonioni.

 

 

Melhor Longa Estrangeiro-Metragem: A ÁRVORE DA VIDA, de Terrence Malick

Crítica de Adalberto Meireles (Blog Ponto de Cinema 16/08/2011)

Estranha a sina de Cannes em maio passado. De um lado, um cineasta assoberbado, Lars von Trier, disse loas sobre o nazismo e Adolf Hitler, durante a coletiva de imprensa. Pediu desculpas, mas mesmo assim foi banido do festival. No extremo oposto, outro, Terrence Malick, que afinal levou a Palma de Ouro, avesso à badalação, não deu entrevista, nem apareceu para receber o prêmio.

O dinamarquês Von Trier e o norte-americano Malick são os responsáveis por dois dos principais filmes do ano. Mostraram que têm natureza diversa, mas em algum ponto convergem. Você pode até não gostar, mas difícil sair tranquilo de uma sessão de Melancolia ou de A Árvore da Vida, que trabalham juntos ao abordar a existência do homem e sua perspectiva diante do universo intocável.

Melancolia, sobre o qual já se falou aqui, uma obra revoltada, esculpe personagens em crescente estado de agonia, sem ajustes, para depois confrontá-los, sós, diante do fim, como um Cristo pregado que pergunta por que foi abandonado. Von Trier fala da natureza, de nós e de todas as coisas que nos rodeiam, assim como Malick, em A Árvore da Vida, que, enfim, tenta apreender a existência em seus variados instantes, do mínimo possível ao máximo impreciso e glorioso.

O mínimo seria o início, a formação, que tem a ver com o núcleo familiar de pai, mãe e três filhos retratados no filme, que, a partir de então, se estende a uma tentativa de compreensão do universo e da existência do homem na terra, o máximo. Aliás, em tudo pode existir o mínimo e o máximo, norteados por duas forças definidas como a natureza e a graça que são, na realidade, dois caminhos opostos, para escolher e seguir.

Ambos estão no filme representados, respectivamente, pelo pai e pela mãe (o casal Obrien, Brad Pitt e Jessica Chaistain), que encontram a correlação no filho mais velho, Jack (Hunter McCracken, quando criança/adolescente, e Sean Penn, na fase adulta). Aqui, como em Melancolia, a lógica dialética regulando todas as coisas. Jack, que reflete sobre a perda de um dos irmãos, não se livrará jamais da dor a que a tragédia levou a família. Mas ele permanecerá como o fiel, o fruto mesmo desta árvore da vida, que pende voluntariamente para a delicadeza e amorosidade da mãe, em confronto com a intransigência e rigorosidade do pai.

A citação a Jó, no início de A Árvore da Vida, tem a ver com um plano traçado para o homem na terra. Um pouco como em Melancolia, que vai buscar ressonância na história do Cristo só, pregado, abandonado. Jó precisava ser provado porque ele era próspero, rico e teria que dizer se sua manifestação de fé seria a mesma se lhe tirassem o dinheiro, a saúde, a família, tudo. E deixasse ele na vida apenas por um fio. O homem pregado e o Jó moribundo não entendem por que tanto sofrimento. É um monólogo interior que nos dá conta da incompreensão em torno da pena. Como o monólogo de Jack.

A ideia perpassa a obra de Malick, um cineasta bissexto que, ao longo de quase quarenta anos de carreira, fez apenas cinco filmes em que, pelo menos nos principais deles, esse sentimento de impotência surge e se instaura. Seja na história dos soldados de Além da Linha Vermelha (1998), que ultrapassam o limite inexorável da guerra e traçam uma escolha, ainda que íntima, mas infinita, alternativa à dor, seja na história da menina de Dias de Paraíso (1978), que tudo vê, tudo sabe, conhece e, como o Jack de A Árvore da Vida, tem seu ingresso comprado, o seu rito traçado, para a vida no mundo dos adultos.

Crítica de Cid Nader (Cinequanon 12/08/2011)

Criar expectativas quanto à chegada de um novo filme – principalmente quando ele é obra de um dos diretores que sempre mantém alerta o sentido do aguardo, da ansiedade do espectador, já que, tanto é inequívoco que sempre concretizará obra maior, quanto há a certeza que não tem pressa alguma em concluir uma nova, como é o caso do singular ianque que é Terrence Malick – pode gerar disfunções ou complicações intelectuais na hora de discorrer sobre o resultado por texto opinativo de sentido pretensamente crítico. Já não bastasse o modelo único de cinema que ele professa, que não permite análises simplistas porque fruto de trânsito que vai a remexidas neurológicas para a comunicação com quem o vê (Malick criou um esquema de edição que faz com que o cérebro altere o padrão comum coletivo – aquele que observa tudo com a ligação “lógica” entre o sentido sonoro e o visual -, gerando sequências que se fundem de modos diversos, sem que o corte “certeiro” seja o preferencial, onde as imagens transitam por elipses ou “névoas temporais”, e principalmente pelo desligamento entre o que se olha e o que se ouve num mesmo tempo, já que os pensamentos ou falas de seus filmes costumam se estender para além das imagens que geraram seus inícios), a essência do que conta em suas histórias jamais segue padrões literários formais, na tentativa óbvia de demonstração de seu modo de observar a vida (que é um misto entre o desconhecido/religioso e a certeza de que a natureza ainda resiste como o elemento de abrigo concreto mais importante, onde o homem se percebe como o ser terráqueo mais distante dela, e pelo qual alguns lutam, até insandecidamente, para poder pertencer).

Portanto, se é por um cinema tão totalmente atípico que as expectativas afloram, como conseguir padrão e pé no chão na hora de dissecá-lo? Principalmente se o novo filme aguardado (atendendo pelo nome de A Árvore da Vida) chega como um dos melhores trabalhos, num ano em que temos já algumas obras primas estreadas por aqui: Tio Boonme, Cópia Fiel, Singularidades de Uma Rapariga Loura, Além da Vida.

Talvez o melhor caminho seja divagar, como fazem os trabalhos do diretor, sem certezas, com espírito livre, e questionador. Num filme que busca na essência bíblica seu mote de partida (é citada a história do livro de Jó – tanto nos créditos iniciais, como na missa de falecimento), o questionamento a Deus ante perdas se faz como um clamor intenso na busca de razões: se Deus dá de maneira tão bondosa, como pode retirar de forma tão abrupta (ou parecendo cruel)? Por qual razão é necessário acreditar na bondade sem que os espaços que a maldade toma (ou seriam sempre atitudes divinas?) se estabeleçam como os de maior imperiosidade na mente de alguém que adultece atormentado por tantas verdades distintas? Jack é o menino primogênito (aquele que na bíblia é tratado com distinção – não regalias, mas em quem o pai deposita seus sonhos inconcretos, ao mesmo tempo que permanece como a primeira figura a ser castigada em momentos de fúria; que toma para si os ofícios de proteger e cuidar dos mais novos, mesmo que isso lhe imponha nos ombros a carga do mais cruel carma; que acaba tendo de entender tudo, mesmo quando não, porque se lhe foi imposta a ideia do dever de cuidar e orientar; e em quem impõe-se mais forte as angústias dos questionamentos gerados pelos laços sanguíneos) que carrega para a frente, para o futuro que é no agora, as cargas, da perda (“de quem não poderia perder, já que era alvo de sua proteção”), e das figuras geradoras (pai e mãe) conflitando em “importância” por décadas em seus pensamentos.

Visto assim, A Árvore da Vida revela ter um assunto comum (quase como um fiapo, mas tão possante quanto somente as religiões e a psicologia conseguiram fazer entender) sobre onde seus personagens irão transitar. Vista assim, qualquer obra de Malick se oferece portentosa por oferecer resultados por modelos de construções que somente ele consegue imaginar (e executar): a partir daí restam exemplos (dele) para que se entenda o poder de digressão que o cinema oferece para quem saiba o quanto ele é maleável e aberto a boas e conscientes manipulações. Vistos assim os elementos componentes, tudo o que ocorre no filme é pensado para servir de campo, estrada, abrigo, por onde a história de aparente pequena amplitude (mas forte porque do âmago humano, de complexidades que têm de ser pescadas lá atrás da letra mais facilmente visível do livro bíblico – algo que setores da psicologia pescaram e transformaram) ganharam as amplidões “malickianas” de estilo, e o filme explode na tela.

Explodir na tela significa que todos os campos possíveis passam a ser utilizados e manipulados para que um filme com a grife do diretor seja constatado. As elipses deslocam os elementos, por vias daquelas comuns a ele passando a montar uma história que se beneficia dos “truques” que sempre fazem o espectador decolar por ondas incomuns. Terrence, tendo sempre o livro de Jó como o ponto fixo originador das inquietações (aqui) que atormentam seus personagens pelo sempre de sua obra, vai à natureza, aos elementos comuns que fazem da vida e de buscas humanas algo perfeito para ser filmado e virar arte. Utiliza milhares de imagens de captação científica, montando segmentos que se estendem por muitos minutos hipnotizadores – sempre amparado por trilha sonora que também remete a lembrar autoralidade -, para repentinamente trazer o espectador de volta à certeza de que o que se passa na tela não é um documentário que busca “entender” a origem de tudo, intrometendo uma cena com dinossauros (!) que se encerra com uma ação de um para com outro tão bela quanto simbólica da condição terrestre ante o poder deslumbrante e incontrolável da natureza/Deus. Todo esse enorme instante de divagação imagética serve de preparação para os questionamentos pensados que percorrerão o filme até seu fim.

Tais pensamentos, de Jack, instigam a pensar na condição do diretor ante essa sua obra: dá para se compreender que há muito de sua vida de infância revisitada, que há muito de suas dúvidas eternas repensadas, que há admiração dele por essas coisas que poderiam remeter a um Deus mas que podem ser compreendidas como fruto de angústias ou desejos de maior conhecimento. Porém, o principal mesmo está nas maneiras encontradas por ele para “contar” tantos “dramas”: com cinema é que ele o faz. Para falar do nascimento de Jack inventa uma das mais belas cenas (que tem a ver com ir à luz lá de dentro da água reconfortante); para mostrar a beleza máxima da relação entre os irmãos, filmar suas sombras (tão simples, quanto cinematográfico, quanto pictórico); para falar da dor extrema da perda, os olhos singelos da mãe (afora o eterno questionamento a Deus), o olhar perdido do pai; para exemplificar a importância da música em seus trabalhos, o violão na porta, o piano a poucos metros, dentro, dialogando; as cenas bucólicas das ruas e casas ajardinadas (do início dos 60) amparando a todos com seu sol de verão, em contraste com os enormes edifícios envidraçados (já nos dias atuais) que servem de cenário frio e ideal para a angústia que insiste em estar presente no ser sempre atormentado. É “Pai”. “Mãe”. É “Por Quê”? São os olhares de confiança entre irmãos. É a dança com a mãe. Deus (!/?).

Criar expectativas boas quanto a um novo filme de Terrence Malick é quase como a certeza de que ele (o filme) falará o necessário por si só, sem necessidade de elaborações literárias para explicá-lo: já que ele surge completo, complexo, flutuante.

Crítica de Ernesto Barros (publicada no Jornal do Commercio – Recife 11/08/2011)

Seria o cinema um alimento para a alma? Entre os poucos cineastas contemporâneos que já fizeram esta pergunta, quem chegou mais perto de respondê-la foi o americano Terrence Malick. Sua maior provação de fé é o plangente e telúrico A Árvore da Vida (The Tree of Life, 2011), vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes deste ano. Alçado à condição de obra-prima instantânea, o filme chega bem a tempo de dividir as atenções com Melancolia (Melancholia, 2011), de Lars von Trier, e renovar algumas questões levantadas pelos dois filmes, que, por meio de suas diferenças, expõem o estado de espírito de seus autores.

Para Lars von Trier, o apocalipse de Melancolia representa um state of mind de sua condição atual e reflete uma crise de depressão cujos frutos são os dois últimos filmes que realizou, tendo como primeiro capítulo o visceral Anticristo (Antichrist, 2009). Ao contrário de von Trier, Malick aposta na capacidade de recuperação do ser humano em A Árvore da Vida. Afinal, seu quinto longa-metragem encena, tal como o seminal 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968), de Stanley Kubrick, o nascimento do universo e da vida na Terra.

Antípodas em suas posições filosóficas, os dois cineastas estão próximos quando o assunto é a estética do cinema. Tanto Melancolia quanto A Árvore da Vida são exemplos do quanto a arte cinematográfica ainda tem a oferecer como experiência humana ao espectador. Com a ajuda do diretor de fotografia mexicano Emmanuel Lubezki, Malick desenvolve ao máximo sua ideia de narrativa polifônica na primeira pessoa, que desta vez ficou ainda mais evidenciada pela quase ausência de diálogos.

Ao fazer esta opção pelo monólogo interior – uma invenção da literatura –, Malick assume o risco perder a adesão de um espectador mais acostumado a seguir uma história com começo, meio e fim – não necessariamente nesta ordem – edificada a partir de diálogos. Não foi por outro motivo que A Árvore da Vida demorou quatro anos para ficar pronto. Um dos cinco montadores do filme é o brasileiro Daniel Rezende (Cidade de Deus e Tropa de elite, entre outros).

Na verdade, o enredo de A Árvore da Vida é desenvolvido quase como um fiapo de história, com o aspecto sensorial das cenas se impondo sobre a que está sendo narrado. Basicamente, são duas situações que se misturam ao longo do filme: a primeira, passada nos anos 1950, numa cidadezinha texana, mostra um casal, interpretado por Jessica Chastain e Brad Pitt, às voltas com a educação de três meninos, e a outra, nos dias atuais, se assemelha a uma espécie de lamento de Jack (Sean Penn), o filho mais velho do casal, que agora é um homem de meia idade em crise por causa dos valores aprendidos na infância que não foram seguidos na vida adulta.

Com base em noções sobre a graça e a natureza e o uso intensivo de peças de música clássica, Malick procura o envolvimento do espectador de uma maneira mais próxima da poesia. Ele consegue resultados maravilhosos ao fazer com que o cinema expresse sentimentos e emoções que parecem brotar dos recônditos mais íntimos do ser humano.

Crítica de Heitor Augusto (Cineclick 11/08/2011)

A Árvore da Vida, quinto longa-metragem do bissexto diretor Terrence Malick, toma como ponto de partida a busca de respostas a uma questão: qual é o significado da existência humana? Uma única pergunta resulta num filme que provoca as mais sérias inquietações sobre o “simples” fato de estarmos vivos.

O que não falta a Árvore da Vida são imagens impactantes – aliás, não faria mal a meia dúzia de cineastas se Malick emprestasse um décimo de seu talento de filmar para alguns colegas de profissão. O fluxo cíclico da vida, os fins e os recomeços, as pequenas mortes de insignificâncias diárias estão todas lá, na câmera. Mestre, o cineasta coloca nela, a câmera, a volúpia de seu principal questionamento.

Temos nesse filme personagens perdidos no tempo e no espaço, cegos para algo maior e perambulando dia após dia tentando encontrar um sentido para viver. Seja um pai autoritário (Brad Pitt), uma esposa passiva (Jessica Chastain), um filho que odeia o pai (Sean Penn) e, na idade adulta, observa com extrema distância o desenvolvimento do mundo.

Como enxergar profundamente o sentido da vida quando é dificílimo abandonarmos as mesquinharias cotidianas para observar o próprio ato de estar vivo com distância? É impossível ter clareza quando se está no olho do furacão. Tanto nós, espectadores, como eles, os personagens, estão envolvidos na cegueira típica quando o instinto da sobrevivência é quem comanda. Trata-se de um exercício diário de isolamento cultivar uma saudável distância com a própria vida..

Por isso são muito precisas as opções narrativas de Malick, que indica um tempo (aparentemente, anos 1950), mas não encerra as possibilidades temporais, muito menos a do lugar. É um filme sobre estar à deriva e tentar tomar as rédeas do ato de estar vivo, compreendendo-o. Não é pouca pretensão para um longa de pouco mais de duas horas.

A Árvore da Vida, Palma de Ouro de Melhor Filme no Festival de Cannes deste ano, tem fôlego, mas pede também uma revisão mais serena e distanciada do alumbramento que suas imagens provoca. Tudo no filme é lindo, magnânimo, estrondoso: do som dominador ao mais discreto fotograma, nenhum componente de imagem é banal.

Por trás da beleza, surge também uma leve sensação de descompasso entre a o êxtase imagético e o discurso do próprio filme. Após a poeira baixar, permanece um sutil sentimento de que A Árvore da Vida é uma carta de introdução a questões filosóficas, mas não de aprofundamento complexo em torno delas.

Limitação intrínseca de um filme, que obviamente não é um tratado. Mesmo assim, isso não elimina a reação que a imagem é mais profunda do que o discurso que tenta sustentar.

Senões que não invalidam o estatelamento que A Árvore da Vida provoca ou sua força em inaugurar proposições existenciais que deveriam permear nossa existência não só durante a sessão, mas antes e depois: qual o sentido da vida?

Crítica de Inácio Araújo (publicada na Folha de São Paulo 08/2011)

Que A Árvore da Vida é um filme magistral parece não haver dúvida. Mais: é a obra-prima que Terence Malick sempre prometeu e, por algum motivo, sempre lhe escapou.

Ou por outra: talvez lhe tenha escapado porque a seus filmes anteriores, ainda que admiráveis, faltava, no fundo, a grandeza e a ambição deste. Ambição quase desmedida: captar a dor humana a partir de sua nascente. E qual é essa nascente? A primeira explosão, de que surgem os elementos? A saída dos seres vivos da água para a terra? O amor a Deus e todos os rigores que ele impõe, tal como dá a o conhecer o Livro de Jó? Ser filho? Ser pai?

Tudo isso, talvez, e mais aquilo que de certa forma reproduz tudo isso: a família. A família O’Brien, no caso. Com seu pai (Brad Pitt), o severo engenheiro militar que um dia quis ser músico e trata seus filhos com rigor militar. Existe, é claro, a mãe bondosa (Jessica Chastain). Mas o que pode uma mãe frente a um pai inflexível?

A dor está estampada no rosto de seus filhos. Do mais velho, em especial. Mas o que pode pretender um pai a não ser criar os filhos dentro daquilo que acredita justo? Será o destino do pai o mesmo de Deus, que precisa infligir a Jó os castigos mais amargos?

Ou será, afinal, que o filho sente de forma exagerada qualquer palavra paterna _essa palavra que é lei, que ordena o mundo? E o que pode o filho, em face de uma força tão desmedida senão desejar com todas as forças a morte do pai?

Essas questões passam pela cabeça de todo espectador deste filme, até porque nos são, de fato, endereçadas. E parece que também pela cabeça do filho (Sean Penn), agora adulto e melancólico: por que devemos ferir aos que mais amamos?

É certo que, em meio a tudo isso, existe ainda a morte de um dos filhos. A maior de todas as dores, que o pai só consegue expressar, lembrando, perplexo, que, bom fiel, toda semana doou seu dízimo à paróquia. Ou, pior, lamentando ter censurado a maneira como o menino virava as páginas da pauta musical… A dor das dores se expressa com mais força ali onde a importância parece tão ínfima. Porque a pauta é o irreparável, o tempo que não pode voltar, o gesto incorrigível: a dureza paterna que se manifestou onde devia exigir apenas ternura.

Essas questões, e outras, que A Árvore da Vida nos traz não existiriam sem a ambição e a ousadia formal de Terence Malick. Não se trata de uma saga familiar. Trata-se da família. Do laço mais profundo, aquele que nos constitui. Malick
não conta uma história tradicional, linear. São instante. Fragmentos. Ou antes, estilhaços de vida que se projetam no tempo, que podem atravessar gerações. É a delicada trama através da qual nos tocamos mutuamente, nos ferimos e amamos.

Filme que se esquiva diante da cronologia, A Árvore da Vida pode estar em 1950 ou em 2000 ou no dia da criação: o tempo da origem, como o da fé e o dos afetos a rigor não existe. Por isso esse filme suave como a imagem materna, dispensa maior erudição ou esforço intelectual para ser compreendido: ter uma alma já basta.

Crítica de João Carlos Sampaio (publicado em A Tarde, 26/08/2011).

A trajetória humana cabe num filme? A Árvore da Vida, estreia do sazonal e incomum cineasta norte-americano Terrence Malick, quer dizer que sim. O filme, que venceu a Palma de Ouro em Cannes (2011), é um grande elefante, com tudo que isto pode significar. É um filme pesado, pretensioso, magnífico e majestoso em sua obsessão por alcançar a “grande arte”.

A fita fala sobre a relação pai e filho, mostrando duas gerações, dois focos de observação a partir dos personagens vividos por Brad Pitt e Sean Penn. Só que este é também um filme sobre a herança que cada um carrega como parte da Humanidade, sobre a sensação de acomodar, em cada passo, o ranço de tudo que a espécie representa, desde o Big Bang e as condições que fizeram os homens surgirem até o provável fim da vida no planeta.

Para narrar esta história-indício, que aspira por representar toda a jornada humana, Malick apresenta closes detalhados, epidérmicos, que investiga e vigia os seus personagens. Traz de volta impressões de suas vidas, partículas que tentam sintetizar o todo. Ao mesmo tempo, fragmenta a ação, inserindo situações que desejam cumprir a representação simbólica da passagem do tempo.

O resultado poderia soar apenas grandiloquente, aliás, não deixa de sê-lo, mas se faz autêntico, talvez pela obcecada entrega do autor ao seu exercício. A verdade é que a maneira como Malick manipula o discurso garante a transcendência, porque formata uma narrativa que acredita muito no poder da imagem e no seu casamento com o som em prol de um sentido orgânico, com tal força onírica que fala diretamente aos sentidos.

Impressiona também a harmonia cultivada na estranheza. Não deixa de ser curioso um primeiro plano com recorte tão específico, determinado por um núcleo familiar norte-americano e definido pela cosmovisão dos anos 1950.

Talvez soe desproporcional à abrangência do tema esta microscópica história, mas este desconcerto cai bem. Funciona porque a atuação dos protagonistas, os planos e a atmosfera irradiada aprisionam a partir do truque de apresentar as eternas questões existenciais humanas.

Brad Pitt está muito bem na pele de um pai intempestivo, agressivo, e Jessica Chastan encarna uma mãe doce, generosa, de quem quase temos pena. O fruto dos dois é uma prole a qual acompanhamos em sua vivência familiar e experiências cotidianas.

Mais à frente, um dos filhos, interpretado por Sean Penn, aparece como um homem que sofre para seguir em frente com suas pendências trazidas da infância, daquela infância que nos foi apresentada e com a qual temos grande intimidade, por termos visto os seus ócios e segredos.

A dinâmica que se estabelece entre a conjunção destas duas frentes narrativas, uma precisa em tempo e lugar, outra abstrata, que flerta com o infinito, talvez seja o grande desafio da película para o espectador. Do confronto destas variáveis pode nascer uma imersão plena, uma adesão íntegra ao filme, ou muito pelo contrário, uma sensação de repulsa. Difícil é ficar inerte.

Malick tem cerca de 40 anos como cineasta e apenas cinco filmes no currículo. Cinema, para ele, é um processo de
maturação peculiar de ideias e vontades. Por isto que, por mais pertinentes que possam parecer as comparações entre A Árvore da Vida e outros filmes (Kubrick sem dúvida é uma influência), esta é uma obra autêntica.

É forte, porque não contaminada por imagens banais, cheia de sequências capazes de permanecer, tanto como os seus assuntos reticentes e os recortes dos dias daquela família, que se alojam desconfortavelmente num lugar de memórias incompletas. Lugar que é a parte que nos foi possível ver nesta cadeia da qual também somos somente uma parte; suspeitando, sem certezas, de onde viemos e aonde podemos ir parar.

Crítica de Luiz Joaquim (Cinema Escrito 08/2011)

Assim como há três meses, no 64º Festival de Cannes, chama a atenção a possibilidade de ver nas salas de cinema, na mesma semana, dois filmes tão antagônicos no discurso mas, ao mesmo tempo, tão sedutores plasticamente e igualmente potentes em sua capacidade de envolvimento. Curioso também que, tanto Melancolia, de Lars Von Trier (no Cinema da Fundação) quando A Árvore da Vida (Tree of Life, EUA, 2011) de Terrence Malick (estreando nos multiplex) recorrem a astros celestiais para falar do maior dom que conhecemos: a vida.
Enquanto o dinamarquês põe em questão o rumo da existência frente ao que há de hostil na vida, o filme norte-americano – agraciado com a Palma de Ouro – celebra a existência a partir de dois aspectos: a “Graça” e a “Natureza”. Se por um lado, pela “Graça”, a existência age em função da harmonia entre os seres através de um autêntico altruísmo, sem interesse em sua auto-satisfação, despreocupada com injúrias e insultos; por outro lado, pela “Natureza”, a existência corre um caminho conflituoso.

É um caminho cujo desejo é só satisfazer a si mesmo, e que também usa os outros para atingir este fim. É também um caminho onde ele procurar razões para se tornar infeliz, mesmo quando o mundo inteiro, ao seu redor, apresenta-se exuberante em seu esplendor.

Como forma de contextualizar estas ideia, Malick (também roteirista), 67 anos, usa uma estrutura aparentemente simples do ponto de vista dramático, mas extremamente sofisticada do ponto de visto cinematográfico, implicando numa cinestesia (sugestão de sensações pelo visual) hipnótica.

Pela dramaturgia, a estrutura nos oferece dois momentos. Um é com a família O’Brien (Brad Pitt, como o pai, Jessica Chastain, como a mãe, mais três filhos pre-adolescentes) vivendo nos anos 1950. O outro, é com Jack (Sean Penn), um destes filhos, crescido e confuso, nos dias de hoje.

No passado, a linha que rege a trama foca a obsessão do pai pela formação dos filhos. O personagem de Pitt encarna belamente esta confusão de carinho e fúria que é o ser-humano, representando o caminha da “Natureza”. Já a mãe olha genuinamente para além de si. Sendo ela própria a encarnação da “Graça”.

No meio desse turbilhão, entre a disciplina e o amor incondicional – no qual entra também a relação entre os irmãos -, cresce o pequeno Jack (Hunter McCracker), um filho que carrega para a vida inteira estas marcas, como constatamos em Penn nos dias de hoje.

É, inclusive pela voz da mãe que escutamos, com narração em off, o norte do filme sobre os caminhos da “Graça” e da “Natureza”. “Você precisa escolher um para seguir”, diz ela. Em paralelo, Malick nos oferece belas imagens etéreas sobre a evolução da vida na Terra, desde o Big Bang e o nascimento do universo, até onde estamos hoje. O que remete, imediatamente, ao clássico de Stanley Kubrick, “2001: Uma Odisséia no Espaço”.

Mas, diferente de Kubrick, Malick alterna as duas narrativas sempre com a sua câmera contemplativa, livre do julgamento. Seguindo apenas como alguém que olha curioso para seus personagens e a relação deles com a natureza ao redor. Postura presente em outros filmes seus não menos belos como Além da Linha Vermelha (1998) e Novo Mundo (2005), para citar os mais conhecidos.

Nesse aspecto, não deixa de impressionar que A Árvore da Vida exista hoje, considerando sua origem vinculada a Hollywood e o fogo do mercado do entretenimento e do hedonismo onde está lançado. Sua beleza e coragem só reforça a força do autor que está por atrás de tudo isso. Autor bravo o suficiente para abrir a obra citando Jó, na Bíblia: “Onde estavas quando criei as fundações da Terra, quando as estrelas da manhã brilharam juntas, e todos os filhos de Deus gritavam de alegria?”. Sim, onde estávamos?

Crítica de Luiz Zanin (publicado no Caderno 2 – O Estado de São Paulo)

A Árvore da Vida, de Terrence Malick, é aquele tipo de filme que costuma resistir à análise. Se o pegamos por um lado, escapa pelo outro. Se nos concentramos em um tema, deixamos escapar o todo. Se vamos ao conjunto podemos deixar fugir os detalhes, tão importantes nesta obra. O fato de Malick sabiamente não conceder entrevistas nos deixa livres para interpretar a obra como bem entendermos e dentro dos limites da nossa capacidade. A nada somos induzidos, a não ser pelo estranho poder que emana da tela quando vemos este filme.

Por um lado, é uma obra sensorial, isto é, que nos atinge, em primeiro lugar, pela força das imagens. Em especial aquelas do começo do mundo, em que são traçadas as linhas gerais do Big Bang, do nascimento do universo, a formação das galáxias e dos planetas, o surgimento da vida e a evolução. Quanta ambição cósmica, em descrever em imagens algo que é da ordem do imponderável, pensável talvez em termos de hipóteses e equações da física quântica.

Depois, há o fator humano, em sua escala comparativamente mínima em relação ao universo. Dentro desse microcosmo, uma escala ainda mais reduzida – uma família norte-americana, nos anos 1950. Uma tragédia, a morte de uma criança. Depois, a descrição de uma infância dura, passada em companhia de um pai autoritário e uma mãe cheia de amor. Temos alternâncias dentro do tempo, com essa criança, agora adulta, em sua vida vazia num mundo que perdeu a transcendência.

O homem é esse nada diante do universo. Mas o homem é esse universo em si mesmo, quando visto da sua perspectiva. Poeira cósmica e ser divino, ao mesmo tempo. Infinitamente pequeno e infinitamente grande, dependendo do ponto de vista que o contempla. São as indagações que surgem, e parecem estruturar A Árvore da Vida.

É um filme religioso? Em certo sentido, sim, a começar pelo título, que evoca a Bíblia e a árvore que estaria no centro do Jardim do Éden. Mas é também de uma religiosidade especial, metafísica, por assim dizer. É como se Malick descrevesse, de forma exaustiva, a humana condição (em especial a infância de Jack) para buscar alguma coisa que vai além dela. No plano espiritual, talvez. No terreno da filosofia, como arte da preparação da morte. Ou, ainda na dimensão de uma metapsicologia que pressinta a expansão do Eu em uma dimensão cósmica.

Como todo filme de amplo espectro, A Árvore da Vida não se reduz a qualquer dessas circunstâncias. É possível que englobe todas e seja como uma daquelas bonequinhas russas, que esconde outra em seu interior e assim sucessivamente. Poderíamos interpretá-lo intensivamente, e ele ainda guardaria novas camadas de compreensão. Aliás, essa é uma das marcas da grande obra. É inesgotável. A Árvore da Vida é como a perplexidade que sente o homem ao contemplar estrelas numa noite fria. A presença do eterno e do infinito pode lhe causar tremor. Mas também esperança, quem sabe?

Crítica de Marcelo Miranda (Site Filmes Polvo 12/2011)

No seminal ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin escrevia que “o que caracteriza o cinema não é apenas o modo pelo qual o homem se apresenta ao aparelho; é também a maneira pela qual, graças a esse aparelho, ele representa para si o mundo que o rodeia”.

É de conhecimento generalizado que a obra de arte carrega em si valores, crenças e moral muito específicos do criador, às vezes de maneira tão profunda e passional a ponto de afastar quem a usufrui. Ao chegar nesse estágio, a obra precisa (exige) que nos aproximemos dela, que nos tornemos cúmplices, que estejamos suficientemente perto não para entendê-la, mas para absorvê-la e, quem sabe, compartilhar de seus significados. Voltemos a Benjamin: “Aquele que se concentra, diante de uma obra de arte, mergulha dentro dela, penetra-a como aquele pintor chinês cuja lenda narra haver-se perdido dentro da paisagem que acabara de pintar”.

Em A Árvore da Vida, Terrence Malick ambiciona atingir um certo grau de arte que parece mais nos afastar do que nos aproximar. Como escreveu o crítico Eduardo Valente, o filme se configura como algo próximo do ensaio, da abstração e de uma total falta de distanciamento. A aproximação íntima de Malick com sua própria narrativa é tamanha que praticamente exclui o espectador do processo. Isso não significa, porém, que se tenha um trabalho gélido, indiferente ou egocêntrico – ainda que A Árvore da Vida tenha ganhado, em sua trajetória crítica, estes e tantos outros adjetivos menos educados.

O tipo de mergulho proposto (e exigido) por A Árvore da Vida diz menos respeito ao que se enxerga na tela do que àquilo que toma toda a sala de exibição e a própria experiência de se assistir ao filme. O conceito de obra-prima está impregnado em cada fotograma – é um dado pré-fílmico que Malick não faz questão alguma de omitir em A Árvore da Vida. As filosofias espiritualistas, a narração em off desvinculada das imagens, os cortes rápidos no controverso entrecho com Sean Penn, o monumental retorno ao passado e à criação e evolução do mundo, a fragmentação de um cotidiano familiar em momentos que não dialogam cronologicamente, os planos microscópicos e macroscópicos da natureza: em cada um desses elementos (e em tantos outros mais), Malick claramente tenta fazer de seu quinto longa-metragem o maior trabalho de sua carreira. O filme evidencia existir no intuito de ser o autêntico atestado de algum tipo de angústia a qual não necessariamente teremos acesso muito claro. Podemos embarcar nessa angústia ou negá-la – mas não ignorá-la nem ser-lhe desatentos.

Aqui, cabe um pouco de biografismo. No livro-reportagem Como a Geração Sexo, Drogas e Rock’n’roll Salvou Hollywood, o jornalista Peter Biskind relata um trecho revelador da vida pessoal de Malick que diz muito do que viriam a ser seus caminhos artísticos.

Ele era tímido e introvertido, falava muito pouco. Malick vinha do Texas. Seu pai era um executivo da Phillips Petroleum, e ele tinha dois irmãos mais moços, Chris e Larry. Larry foi para a Espanha estudar violão com Segovia, um professor cujo rigor era lendário. No verão de 1968, Terry (Malick) soube que seu irmão havia quebrado as próprias mãos, aparentemente enlouquecido com seus estudos. O pai pediu que Terry fosse à Espanha ajudar Larry. Terry se recusou. O pai foi, e voltou com o corpo de Larry. Aparentemente, ele cometera suicídio. Terry, o irmão mais velho, fora coberto pelos privilégios da primogenitura. Ele é que havia estudado em Harvard, tornara-se um Rhodes Scholar, e quando seu irmão caçula mais precisara dele, tinha falhado. Para sempre carregaria o peso opressivo da culpa.

No começo dos anos 80, depois de seu segundo filme, Dias de Paraíso (ou Cinzas no Paraíso, como também é conhecido), Malick escreveu um roteiro intitulado Q. Conforme Joe Gillis num artigo de 1995, seria um projeto sobre “as origens da vida na Terra”. Não há muitas dúvidas de que deveria ser o protótipo de A Árvore da Vida, evidentemente deixado de lado com o passar dos anos (Malick ficou duas décadas sem dirigir um filme, até lançar Além da Linha Vermelha em 1998).

Pensando no teor definitivo de A Árvore da Vida, naquela sensação de ter sido feito com o intuito de ser “o grande filme sobre a vida e a morte” e especialmente numa certa falta de perspectiva que transparece nos principais questionamentos que o filme suscita (“De onde viemos? Para onde vamos? Do que somos feitos?” são perguntas que tendem a surgir com mais intensidade de quem ainda está tateando algum tipo de rumo e, de alguma forma, não se encontrou e não sabe para onde ir), a impressão é que Terrence Malick precisou chegar até aqui – na idade em que está (ele fez o filme já próximo dos 70 anos), tendo realizado quatro filmes intensos antes e acumulado um aprendizado pessoal e artístico ao longo de décadas – para retornar às suas angústias mais essenciais, mais ingênuas e (por que não?) mais infantis.

A perda do irmão, relatada por Biskind, é um elemento talvez deflagrador de uma busca que nem mesmo Malick talvez soubesse até onde fosse perdurar. Por não saber sequer quais seriam as perguntas a fazer, ele não se arriscou a expor as respostas. Preferiu, antes disso, se ater a transformar em imagens e sons um tipo muito particular de sensação, o sentimento de errância e de não-pertencimento que caracteriza filmes como Terra de NinguémDias de ParaísoAlém da Linha Vermelha e O Novo Mundo. Em todos, há personagens que têm dúvidas, mas não sabem para onde seguir atrás de respostas; eles sabem que precisam se desgarrar do espaço onde estão para encontrarem algum tipo de expiação fora das convenções; não entendem, mas agem de acordo com instintos moldados não só pela natureza que os rodeia, mas pelo fluxo histórico que insiste em fazer o mundo girar e as pessoas viverem, enquanto eles mesmos se inserem nesse fluxo. Daí que a Grande Depressão, a Segunda Guerra Mundial ou a colonização da América, antes de processos puramente estruturadores da sociedade como a conhecemos, tornam-se ilustrações do caminhar dessas figuras sem lugar – dentro e fora delas mesmas.

Daí também ser necessário, como última tentativa, retornar ao princípio do mundo para, quem sabe, encontrar alguma chave de compreensão que justifique a perda de uma pessoa que se ama. O procedimento proposto por Malick em A Árvore da Vida é uma espécie de volta à própria mentalidade do diretor. Equivale a uma nova tentativa de, agora imbuído de todo um trajeto, retomar o que ficou largado. Somente a maturidade dos anos e o acúmulo da vivência puderam fazer com que Malick conseguisse, enfim, lançar na tela (e tatear respostas) esse existencialismo que ele tanto precisava encontrar. Em se tratando de Terrence Malick, esse caminho não poderia ter sido diferente do que se vê em A Árvore da Vida. É possível vislumbrar o olhar perdido de Sean Penn e suas andanças pela urbanidade opressora e fria como reflexos de Terrence Malick, como se ele se projetasse para dentro de sua própria criação e estivesse ali, confundindo nossas impressões e se colocando pessoalmente diante dos enigmas do cosmos, disposto a ir até onde,
desta vez, os questionamentos o levarão. Porque não há mais caminhos a percorrer.

Voltando a Benjamin, para concluir: “Sempre foi uma das tarefas essenciais da arte a de suscitar determinada indagação num tempo ainda não maduro para que se recebesse plena resposta. (…) Daí porque as extravagâncias e exageros que manifestam nos períodos de suposta decadência nascem, na verdade, daquilo que constitui, no âmago da arte, o mais rico centro de forças”.

Crítica de Neusa Barbosa (Cineweb 15/03/2011)

Em sua interrogação cósmica sobre a origem do universo e o sentido da vida humana, A Árvore da Vida, vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2011, nunca esconde suas altas ambições. Não há nada de se estranhar, recordando-se que o diretor Terrence Malick (Além da Linha Vermelha) é formado em Filosofia pela Harvard e lecionou essa matéria no não menos prestigiado MIT, o Instituto de Tecnologia de Massachussets. É um tipo de pensamento filosófico, portanto, que guia este roteiro, assinado como sempre por Malick, que situa em seu centro o personagem Jack (interpretado na maturidade por Sean Penn, na adolescência pelo excelente Hunter McCracken).

A narrativa, em boa parte, é uma viagem às memórias de Jack, que visitam particularmente a infância passada em Waco, Texas – não por acaso, o local onde cresceu o diretor, embora haja controvérsias se ele nasceu mesmo lá ou em Ottawa, Illinois. Nessa infância, os protagonistas são a mãe (Jessica Chastain), o pai (Brad Pitt) e os irmãos menores, um dos quais morreu adolescente.

Essa morte do irmão assombra Jack e é um dos motores a levá-lo a uma indagação maior sobre o sentido do mundo e a existência de Deus, pois é certamente num mundo impregnado de cristianismo que ele cresceu. Mas, dentro de seu coração, lutam os dois caminhos que o filme aponta desde o começo como as margens do curso da vida: o caminho da graça (encarnado pela mãe) e o da natureza (simbolizado pelo pai).

Este microcosmo representado por esta família, que é um protótipo da América dos anos 50, mas não só – pode ser vista como um modelo de família de qualquer parte do mundo ocidental – é inserido no macrocosmo do mundo natural. Assim, as imagens de A Árvore da Vida levam não só Jack como todos os espectadores a visualizarem uma viagem no tempo, à origem da vida no planeta, com direito à passagem dos dinossauros (que são os melhores e mais vívidos que o cinema já mostrou, superando com muitas vantagens os de O Parque dos Dinossauros de Steven Spielberg).

Em sua parte central, o filme divaga por esplêndidas imagens de natureza, como uma erupção do Etna, as geleiras da Antártida, os oceanos, diversos animais – que alguns jornalistas descreveram ironicamente como “momento National Geographic”. Ironia à parte, essas imagens fazem sentido dentro daquilo a que a história se propõe, reavaliar a trajetória de um homem, um homem qualquer, por suas perguntas sobre si mesmo e sobre a vida. Coisas que um Stanley Kubrick faria, e que Malick executa com maestria semelhante, embora numa chave bem distinta.

Se há um perigo a respeito de A Árvore da Vida é ser interpretado como um filme religioso, o que não é – muito embora Malick situe-se em território bem mais espiritualista do que Lars Von Trier e seu Melancolia. Sem dúvida, a religião faz parte da própria formação dos personagens – e não se esqueça que Waco foi o palco de uma tragédia de fundo religioso em 1993, culminando com a morte de 76 integrantes de uma seita fundamentalista cristã liderada por David Koresh. Entretanto, se o filme de Malick tem algum fundo espiritual, ou seja, anseia explorar além da matéria, é muito mais
filosofia do que religião. Mas sempre haverá quem pense o contrário, especialmente numa sequência em que Sean Penn revê os personagens de seu passado numa praia. Aí, porém, a psicanálise parece uma referência melhor.

A Árvore da Vida é um filme belo, intenso e raro, pelo arco que se dispõe a atravessar, pelas camadas de sentido que suas imagens quase hipnóticas conseguem desdobrar a cada visão – ao mesmo tempo que criando personagens de uma densidade impressionante, capaz de torná-los simbólicos e transcendentes, universais ao menos no hemisfério ocidental. Uma façanha difícil de igualar, que justifica os longos anos gastos pelo recluso diretor em sua elaboração.

Crítica de Orlando Margarido (Carta Capital 13/08/2011)

Há sempre um conceito de obra conduzida em partes, como em uma sinfonia, quando se trata do cineasta americano Terrence Malick. Dele podemos esperar um novo filme depois de longos intervalos, uma produção tão perfeccionista e demorada quanto intrincada e uma postura excêntrica preservada longe dos holofotes da badalação do cinema. Um mestre, preocupado em não se expor mais do que sua criação. Tudo isso se reforça mais uma vez com A Árvore da Vida, sua recente produção que chega nesta sexta 12 às telas depois de seis anos da anterior, Um Novo Mundo. O que torna mais instigante essa estreia é a percepção de que o sentimento tão personalista do diretor foi levado para dentro do filme, ou seja, mais do que nunca reflete um fluxo de criação construído em movimentos. Especialmente porque o trabalho vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes trata em muito do próprio gênese, das leis que regem a existência humana, do universo e, por fim, como distingue o título, da vida.

Se Malick sempre tendeu a uma compreensão mais filosófica em seu cinema, esta agora é assumida provocando talvez surpresa por se manifestar em uma certa religiosidade e também em uma visão metafísica. Há, evidente, a trama mais realista que serve a suas intenções. Uma abertura com citação do Livro de Jó prepara a tragédia que se abaterá sobre a família O’Brien, liderada por Brad Pitt. Um dos seus três filhos morre e a perda será definitiva para a mãe (Jessica Chastain), que percorrerá seu luto cobrando de Deus tamanha crueldade. Este é um movimento. Outro será a associação feita pelo cineasta com os ciclos inevitáveis da natureza. Se há um fato
irreparável como aquele, é pequeno seu sentido num universo maior de coisas.

A vida, assim, seguirá para os O’Brien, tempestuosa nas brigas incessantes do casal porque o patriarca, militar, quer preparar e garantir um destino certo para os demais filhos. Trata-os com dureza e tolhe a mínima tentativa de liberdade. Jack, o mais inconformado, cresce com revolta. Garoto, já apontava a maneira injusta como Deus procede. O filme então o verá adulto (Sean Penn), na procura de descobrir a razão de tal sentimento do pai e em que momento a angústia tomou o lugar de um amor filial. É a última e espiritualizada parte. Malick concede o movimento final, aquele a confirmar em toda a sua plenitude a condição de que se alcança, enfim, uma obra de mestre.

Crítica de Luciano Ramos (Blog Cinema Falado 11/08/2011)

A Árvore da Vida tem traços comuns ao excelente Foi Apenas um Sonho (2008). Por meio de uma tragédia familiar se abatendo em meados dos anos de 1950, sobre um casal de classe média, Sam Mendes flagrava o nascimento de uma cultura, que é norte-americana e em larga medida universal. Um modo de viver e pensar o mundo que se formou a partir do pós-guerra, sustentado por um sistema econômico que só agora entra em crise e que se propagou de modo amplo – principalmente por intermédio do cinema, da indústria fonográfica e da televisão. Mas, enquanto Sam Mendes dissecava aquele contexto utilizando a dramaturgia tradicional, Terrence Malick rompe com a forma costumeira de filmar uma trama e constrói um sistema narrativo bastante original, provavelmente em busca de uma retórica mais expressiva e impressionante.

Em primeiro lugar, reduz a história que se resume no conflito entre pai (Brad Pitt) e filho (Sean Penn, quando adulto) à sua formulação mais simples. Apesar da participação da mãe e do irmão – com quem nutria uma relação de amor e ódio – é nessa dualidade que ele concentra a fissura principal daquele mundo.

Em seguida, extrapola esse cenário para o universo inteiro e para outras eras do passado, ou talvez do futuro. Há, por exemplo, imagens de planetas explodindo e de um dinossauro perdido na amplidão de um pântano. Evitando recorrer à computação gráfica atual, Malick trabalhou com o veterano Douglas Trumbull (1042), que cuidou dos efeitos especiais de 2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968) e Blade Runner (1982).

Finalmente, percebe-se que a dicotomia pai/filho abrange o universo inteiro e o discurso de Malick passa a abarcar o próprio binômio criador/criatura. No prólogo do filme, ouve-se um versículo bíblico do livro de Jó que remete ao drama da criação. Isso atribui um determinado sentido aos personagens de Brad Pitt e Sean Penn, cujo nome é o mesmo
– Jack O’Brien, com as iniciais formando JOB (Jó, em inglês). Nos diálogos, além dessas referências veladas e principalmente nas falas da mãe (Jessica Chastain) são inúmeras as menções à divindade. Ao morrer o seu filho mais novo de 19 anos, o padre afirma que “agora ele está nas mãos de Deus”. Ao que ela questiona: “mas ele não estava lá o tempo todo? E ensina os filhos: “há dois caminhos na vida, o da natureza e o da graça; a natureza só deseja satisfazer a si mesma e promove a infelicidade, enquanto o amor sorri em todas as coisas”.

Quando regressa com a câmera ao plano da família, Malick se recusa a mostrar as situações de modo corriqueiro e filma, em ângulos inusitados, gestos e atitudes dos personagens que seriam desprezadas na edição da maioria dos filmes já vistos. O filme tem sido qualificado de pretensioso porque procura ampliar ao extremo um simples drama familiar, relacionando-ao com cenas que se referem à origem do universo e ao espaço sideral. Mas não há como negar a beleza, a exuberância e o poder sugestivo dessas imagens que devem ter contribuído para que o filme fosse o ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano.

 

Melhor Curta-Metragem: PRAÇA WALT DISNEY, de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro

Crítica de Cesar Zamberlan (Cinequanon 08/2011)

Um olhar diferente e bem humorado sobre a cidade de Recife, para a transformação da cidade, para aquilo que deveria ser estranho, mas que é absorvido como natural por um olhar mais desatento. Filme inventivo que brinca com as possibilidades de criação a partir do registro de imagens do espaço urbano. A utilização inusitada da sonoplastia, seja com sons de desenhos animados, seja com a música clássica ilustrando cenas reais de um dia de praia é um dos momentos mais interessantes do filme. Memorável a cena da praça que alguém imaginou moderna, mas é kitsch no centro de prédios modernos que parece, vista de cima, e graças à utilização do som, com um carrossel de parquinho com os carros indo e vindo por ela. Uma deliciosa brincadeira com a cidade moderna e mecanizada com direito a vista dos personagens do estúdio Walt Disney a Praça Walt Disney para a surpresa dos seus frequentadores. Genial e surpreendente a cada imagem.

Crítica de Cid Nader (Cinequanon 08/2011)

Como fazer um documentário, intervindo diretamente nele em certos momentos, e ainda assim conseguir impor uma marca de coisa quase perfeita pela verdade de denúncia buscada e ostentada? Com imagens impactantes em seu aspecto macro, com observações de pequenas situações ou cantos específicos bastante reveladoras, e uma elaboradíssima trilha sonora para ajudar a fluir a compreensão de seus vários momentos (são bastante diversos entre si, física e “geograficamente”, e com composições elaboradas que utilizam mecanismos para o diálogo entre as filmagens e a banda sonora – muito mais do que procedimento comum, agindo como substituição de diálogos ou expressões oralizadas), os diretores, Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira fizeram “mais” um documentário que evidencia a preocupação quase santa que tem tomado de assalto as mentes dos seres pensantes de Recife, que é da verticalização das construções na orla, como correlação do aburguesamento e perdas das tradições da cidade.

Tanto quanto o cinema de lá ganhou corpo e se estabeleceu, essa preocupação com o que ocorre lá tem sido mote para que uma boa das produções de lá possam servir de campo fértil para experimentações (quase sempre, boas), e Praça Walt Disney pode ser considerado como um dos mais impactantes e bons. Quando se vê um amontoado de bexigas (balões) coloridos no mar imitando a figura do pior signo de Disney (o rato Mickey), percebe-se que há em trechos da praia (pelas belezas, por ser caminho de entrada) um forte fator de desequilíbrio, onde os ricos se divertirão, os pobres trabalharão, e a cidade será invadia pelo capitalismo. Quando as câmeras estáticas dissecam uma região com verdadeiros amontoados de prédios e seus inequívocos sinais (sua altura exagerada, seus sinais de garagem, os carros nos lugares dos humanos entrando e saindo das garagens…), e no meio disso tudo uma praça horrendamente kitsch com o nome do ianque dos desenhos, sabe-se que ali já não é mais o lugar lindo e deles que foi até a pouco – reforçando isso, a grande sacada das fotos de locais, abaixadas após um tempo diante das lentes para que se constate a realidade: chocante e triste.

O filme é duro e realista, e não precisa de falas para se fazer compreendido. Cáustico e azedo no final, com mais uma intervenção artificial (boneco do rato Mickey e mais um outro), cutucando feridas, deixa a certeza de que invenções ainda são muito bem-vindas, quando concretizadas com sabedoria e compreensão das ferramentas que se tem à mão. Uma aula das boas, em curta, das possibilidades que o cinema proporciona.

Crítica de Filipe Furtado (Cinética 01/2011)

…Já Praça Walt Disney propõe um retrato de um dia em Boa Viagem no Recife, em especial os arredores da praça-título. É mais um dos vários filmes pernambucanos recentes marcados pela reurbanização da orla (como Avenida Brasília Formosa já mencionado aqui na cobertura – Mostra de Tiradentes 2011), no caso através de uma comédia de observação, com ritmo à Jacques Tati. Há uma gag recorrente no filme, em que lugares específicos são sobrepostos a fotos antigas deles mesmo, e o filme todo funciona nesta chave: a câmera de Pinheiro e Oliveira localiza algo novo em cada um destes lugares, encontra um ponto de fuga para eles. O filme se reitera um pouco demais ao longo da duração explicitando suas operações em excesso, mas nunca perde este frescor de olhar. Contagem e Praça Walt Disney nos lembram que existe algo eminentemente político no simples ato de ver.

Crítica de Luiz Joaquim (Cinema Escrito 01/2011)

TIRADENTES (MG) – Há uma história antiga que se escuta no Recife que diz assim: quem vem chegando do mar para o nosso litoral, a sensação é a de ver a cidade abaixo do nível do mar, como se a paisagem que se aproxima estivesse erguendo-se da água. Na abertura de seu novo curta-metragem, Praça Walt Disney, lançado quarta-feira aqui na 14ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro (do premiadíssimo Superbarroco) nos dão essa exata sensação para depois criar um cômico – ‘irônico’ seria melhor – e melancólico registro do que se tornou o bairro de Boa Viagem, na zona sul do Recife.

Mesmo podendo ser relacionado com outros filmes pernambucanos que perpassam por uma crítica a respeito do desordenado crescimento imobiliário na capital pernambucana, como Eiffel, de Luiz Joaquim, Menino Aranha, de Mariana Lacerda, Um Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro, ou Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho, o novo filme do casal parece ir um pouco mais além.

Este ‘além’ reside exatamente no desenho sonoro e visual que Sérgio e Renata aplicam ao filme. Desenho visual com direito a intervenções artísticas como a do Mickey de balões de ar dançando no mar, e outro, humano, indigente na tal praça Walt Disney. Sons também colaboram para esse imaginário construído, como a trilha sonora de Fantasia, 1940, cobrindo a genial cena da piscininha na areia.

Outros sons que embalam “Praça…” são as primeiras gravações de canções como Aquarela do Brasil, Tico-tico no fubá e outras que remetem a uma praia de Boa Viagem de outro tempo. Na verdade, a um tempo onde relações humanas e os reflexos dessas relações humanas compunham aquela paisagem urbana de maneira mais harmoniosa.

O confronto de fotografias em P&B mostrando aquela praia nos anos 1920 até hoje contrastando com a Boa Viagem caótica e de concreto frio de hoje são, sem dúvida, nostágica; mas é também desse contraste que surge a reflexão sobre no que, nós recifenses, nos tornamos ou estamos nos tornando.

Talvez o maior mérito de Praça Walt Disney esteja na postulação de todas essas questões sem soar deterministas ou necessariamente julgadoras, mas, basicamente, constatadoras. Há sim, sem dúvida, uma elegância no filmar de Sérgio e Renata com a qual já podemos perceber algumas características próprias.

Uma delas, talvez a mais marcante, arriscamos, seja o compromisso do casal com a liberdade em mostrar um urbano injetado de composições artísticas elaboradas e, por isso mesmo, nos dando uma leitura ora dura, ora doce. E tudo isso já estava sendo pré-anunciado no seminal vídeo Guenzo (2004),de Renata. Praça Walt Disney ainda será muito comentando pela imprensa especializada em cinema até 2012, ou 2013, e também no exterior; podem anotar.

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