Inquietação estética e narrativa na 27ª Mostra de Tiradentes

por Francisco Carbone*

O cerco de olhar para um recorte curatorial, em festivais híbridos de formatos de duração, não raro é observado com atenção redobrada (ou exclusiva) tanto partindo do público final quanto com a crítica especializada, para a produção de longas. Os festivais restritos exclusivamente a curtas, com raríssimas exceções – se é que existe algum, na verdade – não conseguem bancar a malha crítica em sua estrutura de logística. Muitas vezes, um filme com um excelente passaporte mundial não obtém tanto marketing interno quanto poderia, justamente por sua duração não interessar a quem tem o que dizer. A Mostra Tiradentes 2024, intitulada “As Formas do Tempo” em sua temática, foi um deleite maior para quem não se fechou ao curta-metragem. 

Especificamente nessa última temporada, vimos uma seleção de filmes que partiam de um ponto de vista que equilibrava uma constante mirada para a melancolia, diante do que se nunca teve ou de sonhos não necessariamente possíveis. A perda era uma constante metáfora para estabelecer a precisão de estado entre tais personagens, geralmente jovens em reincidência de abandono emocional e/ou estatal. De maneira explícita, “Tato”, de Pedro Carvalho, e “Cassino”, de Gianluca Cozza, estão em pontos particulares de uma mesma ausência. Na escassez de oportunidade, surgem novos códigos para absorver a realidade; seja no escapismo fantástico ou na concretude de uma encruzilhada, no meio do que se diz, é possível que consiga vazar mais humanidade que personagens.

Essa investigação chega até um dos filmes de abertura do evento, que este ano homenageava as carreiras de Bárbara Colen e André Novais Oliveira. “Roubar um Plano”, dirigido por ele e por Lincoln Péricles, não se furtou em igualmente mostrar a dualidade entre o trabalho precarizado e a melancolia particular que o indivíduo, assolado por esse esforço estatal em diminuí-lo, atravessa mesmo sem perceber. Assim como no premiado “Ramal”, de Higor Gomes, as fronteiras entre a válvula de escape sensorial e a certeza de uma realidade opressora, nunca se mostram suficientemente claras, no fundo porque são membros de um mesmo corpo insalubre. 

“Roubar um Plano” – Divulgação

Esses títulos traduzem um estado de espírito de inquietação estética e narrativa, mas que não deixa de investigar as figuras posicionadas na frente da câmera, mais do que a forma de preenchê-las. Tradição do cinema autoral brasileiro, ao mesmo tempo em que a história é desenvolvida como uma massa pulsante de ideias, temos as figuras que a integram e que não serão tratadas como trampolim das produções, mas sim como co-autoras do que está sendo contado – elas estão sendo contadas. Se as histórias dessa temporada que está apenas começando traduzem grupos em busca de um novo lugar social, através de dispositivos que os revele, ou que revele cada um desses desejos, Tiradentes foi na caça de cada um deles. 

O filme de Tomás Tancredi, por exemplo, “Garimpando Garimpeiros”. Partindo de uma escolha que pode parecer fácil, a princípio, que é a de outorgar ao personagem que ele se auto construa, o filme revela muito do que está costurando aquelas imagens, porque a voz é direta; são eles, impressos na narrativa por si próprios. Esse também foi o registro escolhido por Rachel Daisy Ellis para seu longa “Eros”, ao permitir que cada sujeito escolhesse o que mostrar entre quatro paredes, com as sensibilidades desenvolvidas por cada um, sem subterfúgios. De maneira ainda mais radical, é o que desenvolve Rafael Rudolf, diretor, roteirista, produtor e centro da narrativa de “Homem de Verdade”, abrindo uma caixa de Pandora sobre a sua sexualidade desde a adolescência, que desemboca no que ele é hoje. 

Se uma dos registros destacados acima é essencialmente uma leitura do Homem em sua construção profissional, incluindo o que se esconde dessa visão, uma outra é a revelação absolutamente íntima sobre como lidamos com espaços que se denominam sexuais e a posterior desconstrução dessas paredes. O filme de Rudolf, de alguma maneira, é um amálgama dessas duas vertentes, quando o indivíduo traveste sua arte e sua investigação do que é sua gênese, seu laboratório de pesquisa – seu corpo, seu desejo, sua volúpia inescapável. É a partir desses questionamentos que uma nova porta se abre dentro da curadoria deste ano, unindo os campos já apresentados: somos nossos sonhos, somos nosso trabalho, somos nosso desejo – o que somos?

Entre o ser e o não ser, temos uma dicotomia pulsante entre cenários. “Nosso Panfleto Seria Assim”, de Leandro Olímpio, flagra um homem na árdua condição de reverberar sua fala, se fazer ouvir, ter o seu discurso outorgado pela imagem, transformar a verbalização em ação. “Eu Não Nasci Para Isso”, de Erik Ely, já finca sua razão desde o título; nega-se o que a sociedade espera de sua condição, mesmo que a sua condição seja filtrada pelo racismo. É como se, socialmente, fôssemos impelidos a obedecer a padrões de discurso e comportamento, que não nos representa ou completa. É o demonstrativo de que a individualidade só pode ser alcançada se você tem o “status quo” necessário para desfrutá-la, caso contrário, precisamos nos contentar em ser mais um peão para a manobra. 

“Eu Não Nasci Para Isso” – Divulgação

Em meio a descobertas tradicionais acerca do lugar onde cada um de nós pode ser dividido – trabalho / indivíduo / Estado – existirá, ainda, aquela colocação ancestral sobre os direitos e deveres de cada um, dentro do que entendemos como lastro social. Pablo Monteiro, em “João de Una Tem um Boi”, constituiu nessa Mostra 2024 o que alguns outros títulos vieram fazendo nos últimos anos: a labuta não é somente um polo de constituição individual, mas uma forma de levar ao próximo um lugar dentro da cultura e da religião. Assim como também o fazem Izabella Vitório e Isadora Magalhães em “O Canto”, a forma mais próxima de sacralizar nosso trabalho é elevá-lo à condição de monumento imaterial. Como se foram abençoados em seu fortalecimento, Mestra Rosália Gomes e Pai Joan se agigantam diante do que realizam, desconectando a forma mais mundana do trabalho para que lhes reste somente o divino. 

O desejo de ter ou ser, uma ideia de pertencimento que não é alimentada pela TV, é o que de melhor poderia ser outorgado pelo cinema hoje, e que liberta o indivíduo de uma dinâmica de classe, é a realização que coloca o nosso corpo como parte integrante de mudança sistêmica, a ponto de representar um futuro não antes visto – e possível. Filmes como “Onde Está Mymye Mastroiagnne?”, de biarritz, ou “Se Eu Tô Aqui é por Mistério”, de Clari Ribeiro, dissecam qualquer percepção pequeno-burguesa sobre normatividade estética ou autoral, para expandir as possibilidades de ação social através do que se é, exclusivamente. É fazer da nossa realidade um acontecimento capaz de provocar mudanças em quem é afetado por nossa imagem e criar para si uma possibilidade de agenda que independe de discurso, porque a própria existência já funciona como tal. 

É nesse painel que também entram pilares ainda mais intrínsecos às questões entre o que se é e o que se deseja, entre os lugares onde podemos promover ascensão e onde o nosso corpo é esse vetor, como em “O Tempo é um Pássaro”, em que Yasmin Thayná reconfigura imagens tradicionais do carnaval para pedir passagem. Não importa como era até então, o que nos move agora é como pode ser, agregador para todos os corpos e todas as denominações, até que elas também sejam supérfluas. Como uma missão maior, a de desbravar territórios para as próximas gerações, onde cada uma das questões jogadas anteriormente aqui sejam agregadoras de um todo, mas que nada sufoque as liberdades individuais, acima de todas as coisas. 

*Francisco Carbone fez parte do Júri Abraccine.

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