A ‘longa viagem’ de Lúcia Murat

Por Luiz Zanin, publicada em O Estado de S. Paulo (SP), em 11/05/12

De maneira um tanto esquemática, costuma-se dizer que a juventude radical dos anos 60/70 tinha duas alternativas – as armas ou as drogas. Ambas conviveram na mesma família, a da cineasta Lúcia Murat, e este é o núcleo duro do seu belíssimo documentário Uma Longa Viagem, que entra agora em cartaz depois de vencer o Festival de Gramado de 2011.

A própria Lúcia Murat lutou contra a ditadura e pagou caro por isso. Foi presa e torturada. Mas o personagem mais evidente do filme não é a cineasta e sim seu irmão, Heitor, que foi mandado para o exterior pela família para protegê-lo de um possível envolvimento com a luta armada. É de Heitor a “longa viagem” de que fala o título. Há ainda outro irmão presente na narrativa, o médico Miguel. Mas está presente de maneira discreta, apenas pela narrativa de Lúcia e algumas fotos.

Quem toma a frente é Heitor, entrevistado pela irmã. Ele, e seu “duplo”, interpretado pelo ator Caio Blat, ao ler as cartas que o andarilho enviava à sua família, em especial à mãe. É um recurso interessante, funcional e bastante tocante, afinal de contas. Caio lê as cartas, como se as estivesse escrevendo.  Ao fundo, imagens “em transparência”, evocando os lugares de que fala, alguns exóticos. A técnica foi inspirada pelo curta-metragem Superbarroco, de Renata Pinheiro. A atmosfera assim criada, pela leitura das cartas e pelas imagens em sobreposição, beira ao onírico, mais que ao realístico.

E, de fato, as viagens de Heitor tinham esse caráter de um sonho um tanto desesperado, mas cuja profundidade quase nunca aparece na narrativa das cartas – muito bem escritas, vívidas, mas destinadas mais a sossegar a família do que esclarecer exatamente o que ele estava passando. Esse sentido se completa pelo que fala, com a dicção um tanto prejudicada talvez pelos medicamentos, mas com a inteligência intacta de quem andou muito, muito viu e tanto experimentou. Tudo é expresso com um invejável senso de humor, que contamina (de maneira positiva) o filme do princípio ao fim.

É bom que haja esse tempero, mesmo porque Uma Longa Viagem traz também passagens pouco agradáveis, como a memória dos tempos de cárcere de Lúcia. Ou os episódios de internação de Heitor, como consequência provável de suas trips prolongadas. Há também o elemento deflagrador do filme – o luto pela morte prematura do irmão Miguel, um médico abnegado, cheio de consciência social.

Nesse ambiente, tanto emocional como rigoroso, se estabelecem as maneiras muito diferentes de resistir contra a ditadura e que se deram no interior de uma mesma família: a resistência pelo trabalho social; o confronto armado, a adesão à contracultura. Racionalizadas, essas opções cobririam quase o espectro completo das formas possíveis de sobrevivência em tempos ruins. Pois é claro que, falando de pessoas particulares, Uma Longa Viagem trata de toda uma época da história recente brasileira, uma fase de ruptura, cujas consequências ainda estão presentes na vida de todos e não apenas nas de seus protagonistas.

“O grande buraco negro da atualidade é a chamada doença mental”

Por Paulo Henrique da Silva, publicado no Hoje em Dia, em 17/07/11

“O grande buraco negro da atualidade é a chamada doença mental” – registra a diretora Lúcia Murat, ao falar dos avanços da medicina na área da psiquiatria, ainda incapazes de tirar, por exemplo, o portador de esquizofrenia da marginalidade. Prova viva disso é o seu irmão, Heitor, tema central do documentário Uma Longa Viagem, apresentado no 4º Festival de Cinema de Paulínia na semana passada.

Também presente na mostra competitiva do Festival de Gramado, com início em 5 de agosto, a produção busca “fazer um grande resgate da vida dele, mostrando sua inteligência e senso de humor” ao relatar suas aventuras pelo mundo durante a década de 1970, regadas a muitas drogas, liberdade e abertura para o novo. “As pessoas, independentemente das consequências, morrem de inveja por ele ter dado duas voltas ao mundo”.

É esta personagem singular que emerge do filme de Lúcia, que aproveitou as cartas do irmão enviadas para mãe para pontuar a narrativa. Elas são lidas e interpretadas por Caio Blat, que aparece em frente a uma tela que exibe imagens da época, formando rico diálogo com a saborosa entrevista de Heitor. Surgem muitas risadas na plateia pela forma aberta como descreve seu envolvimento com drogas, escondidas nas cartas.

A morte recente de outro irmão de Lúcia, Miguel, de personalidade completamente oposta a da diretora e de Heitor, é o ponto de partida do documentário. Enquanto Lúcia passou boa parte da década de 1970 atrás das grades, por seu engajamento político, e Heitor viveu um desbunde lisérgico nos quatro cantos do mundo, Miguel se tornou uma espécie de esteio da família. “Com sua calma, sem ele o Heitor não seria quem é hoje”.

Depois da militância e de ser torturada nos porões da ditadura, Lúcia engrossou as fileiras do cinema, sem abandonar, no entanto, a vocação política. “Foi o cinema que me ajudou a sobreviver. É um exercício para expor as minhas ansiedades e minha história. Talvez eu repita alguns temas, mas de formas diferentes. A violência, por exemplo, está presente em quase todos os meus filmes”, destaca.

Além de documentários como Que Bom Te Ver Viva (1989) e Olhar Estrangeiro (2006), a cineasta também faz filmes ficcionais, entre eles Doces Poderes (1997) e Maré, Nossa História de Amor (2007). Seu mais recente trabalho representa uma mescla destes dois gêneros. “Existe muito de ficção neste documentário. Apesar de falado a partir de uma verdade, a introdução de um ator é importante para segurar o texto”.

A entrada em cena de Caio Blat é a forma encontrada pela diretora para não cansar o espectador devido às longas leituras das cartas de Heitor. “São centenas de cartas muito interessantes, que fazem um arco de dez anos fora do Brasil, mostrando seu deslumbramento ao desembarcar na Europa com 18 anos. Busquei manter o texto literário, cortando apenas algumas frases que poderiam gerar confusão”, salienta.

Como não poderia viajar para os diversos países onde Heitor esteve, Lúcia optou por usar um antigo recurso do cinema, o back projection. Caio atua diante um telão que projeta imagens dos lugares mencionados por ele, que não necessariamente são da mesma época. “Desde o primeiro momento ficou claro que não poderíamos refazer a viagem, até porque alguns dos locais são mais os mesmo. No Nepal, sua moradia se transformou num resort fantástico”.

A preocupação com a beleza das imagens não era tanta a ponto de fazer do filme um programa no estilo do Discovery Channel (TV paga). “O que interessava era a viagem emocional dele e as imagens deveriam acompanhar isso. Usamos, por exemplo, uma performance do Chacal para mostrar Londres. Acaba sendo uma intervenção sobre a intervenção, reproduzindo a mesma sensação da época”, registra.

Cerca de 80% das imagens foi cedida gratuitamente, mas no caso do filme Tabu (1931), de F. W. Murnau e Robert Flaherty, tiveram que pagar pelos direitos. “Foi uma maluquice. Em contato com um escritório de advocacia nos Estados Unidos, me disseram que deveria procurar a fundação que administra o legado de Murnau. Achava que o filme já tinha caído em domínio público, mas alegaram que o co-diretor, Flaherty, só morreu em 1963 e tive que pagar”.

Mesmo problema enfrentado com as imagens de A Chinesa, (1967), dirigido pelo suíço Jean-Luc Godard, um dos inventores da Nouvelle Vague. “Não adianta o fato de Godard ser a favor do direito livre. O filme dele pertence à (distribuidora) Gaumont e também tive que negociar. As músicas também passaram pelo mesmo problema. Uma dos Mutantes que eu queria muito acabou não entrando, porque era cara”, lamenta.

Paralelamente ao lançamento de Uma Longa Viagem, Lúcia Murat trabalha nas filmagens de um novo longa de ficção, Sala de Espera, sobre a reunião de grupo de ex-guerrilheiros na sala de espera de um hospital. A narrativa se alternará entre presente e passado, enfocando principalmente a personagem Ana, vivida por Simone Spoladore e Irene Ravache. O elenco conta ainda com Pedro Paulo Rangel e Otávio Augusto.

“Uma Longa Viagem”

Por Robledo Milani, publicado em Papo de Cinema

Se a seleção de filmes brasileiros no 39° Festival de Cinema de Gramado está bem abaixo das expectativas, felizmente o mesmo não pode ser dito sobre Uma Longa Viagem, o terceiro longa nacional da competição. Esse misto de documentário e ficção – a participação do ator Caio Blat interpretando algumas das cartas relatadas alivia a tensão da mesma forma de distrai do foco narrativo – é uma obra bastante pessoal da diretora Lúcia Murat. Afinal a viagem do título trata do percurso trilhado por um dos irmãos da cineasta, Heitor, que passou a vida percorrendo sem eira nem beira o mundo, dos Estados Unidos à Índia, da Inglaterra ao Afeganistão, da Austrália à Grécia. Mas o que importa aqui não é o turismo, e sim os motivos que o levaram a tão longe e o impediam de retornar.

Murat é uma realizadora de altos e baixos. Após o muito interessante Doces Poderes, entregou o irregular Brava Gente Brasileira, para dar sequência com o ótimo Quase Dois Irmãos, e por fim, com o curioso Maré, Nossa História de Amor, um misto de musical com romance jovem e social que desperta mais atenção pelas partes do que pelo todo. Mas ela nunca se conteve apenas com tramas ficcionais, e entregou também os elogiados Que bom te ver viva, premiado no Festival de Brasília, e Olhar Estrangeiro, exibido no Festival do Rio. Ou seja, não é nenhuma novata – ao contrário da maioria dos competidores em Gramado. E, assim sendo, a expectativa por esse novo trabalho era alta. Antecipação que foi justificada, ao menos em parte.

Ao mesmo tempo em que Murat utiliza os relatos redigidos pelo irmão na época para traçar um painel multinacional, mostra também o que ia acontecendo nestes períodos com ela e com a família, como prisões, a repressão da ditadura, as decepções e as conquistas. E, principalmente, como tudo isso era assimilado pelo caçula tão distante e, ao mesmo tempo, tão presente. Heitor Murat dá seu depoimento, e ele sim é um personagem interessantíssimo. Tão curioso que chega a ser melhor do que o próprio filme.

Durante a projeção não são poucos os momentos em que o riso é aberto e o envolvimento com o público se fortalece. Mas me pergunto se isso dá por uma justa e sincera empatia ou por um sentimento de deboche e estranhamento. Afinal, tem-se como foco principal um homem doente, que nunca se prendeu a nada e nem serviu de apoio a ninguém. Há uma patologia ali, e essa nunca é bem explorada. Diante do desconhecido, portanto, ou tememos ou ignoramos. E não fica claro se é por causa dessa ignorância que se estabelece a identidade – melhor aceitar como está do que tentar, realmente, descobrir o que está ali atrás. Não há esforço por um entendimento maior e mais profundo. Afinal, pode se tratar de algo assustador e, pior ainda, comum a todos.

Nada disso, no entanto, impediu uma recepção calorosa do público, que recebeu Uma Longa Viagem ao término da projeção com a maior salva de palmas aqui em Gramado até o momento. Será que já temos o favorito – ao menos do Júri Popular? Talvez seja cedo afirmar, mas numa competição em que a qualidade está tão em baixa, não seria de se estranhar que algo não perfeito, mas ainda assim interessante, conquistasse de vez a preferência do júri da mesma forma que vez com o público presente.

Caio Blat fala de sua carreira e da experiência de atuar em um documentário

Por Edu Fernandes, publicado no Saraiva Conteúdo, em 14/05/12

Figura recorrente no cinema brasileiro, Caio Blat aceitou um novo desafio ao entrar para o filme Uma Longa Viagem: essa é sua primeira experiência com monólogo e também a primeira vez em que atua para um documentário.

Em entrevista dada por ele e pela diretora Lúcia Murat, são abordados os limites entre a ficção e o documentário – uma fronteira cada vez mais fluída. O ator relaciona seu trabalho no novo filme com outras atuações de sua carreira no cinema.

Uma Longa Viagem conta a história de Heitor, irmão da diretora Lúcia Murat. No meio da ditadura militar, Heitor foi exilado e passou cerca de dez anos viajando por diversos países: Inglaterra, Índia, França, Estados Unidos, entre outros. Ele relatava para a família suas vivências por cartas, que foram preservadas e serviram de base para a construção do documentário.

Caio Blat interpreta Heitor em sua juventude, relê as cartas e contracena com projeções. O tema do amor fraternal (Xingu, Lavoura Arcaica, Carandiru) e o período da ditadura militar (Batismo de Sangue, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias) são constantes na carreira do ator.


“O filme pertence ao público” 
Por Roberto Guerra, publicado no Cineclick, em 09/05/12

Há que se ter certo cuidado em investir numa produção de cinema assumidamente pessoal. Em 2011, durante o Festival de Gramado, Lúcia Murat disse à imprensa que depois de fazer um filme este não lhe pertence mais, “pertence ao público, que vai interpretá-lo de maneira diferentes”. Uma Longa Viagem talvez não consiga ultrapassar essa fronteira e seja sempre um filme de Lúcia Murat, para Lúcia Murat e seus familiares.O documentário, narrado em primeira pessoal pela diretora, busca reviver as próprias experiências e a de seus dois irmãos, Heitor e Miguel, durante os anos de chumbo, expondo os diferentes caminhos seguidos por eles, principalmente os dela e de Heitor.

A produção é um tributo a Miguel, cuja morte incentivou a diretora a realizar o longa.Para que o caçula não seguisse os passos da irmã e participasse do enfrentamento à ditadura militar, a mãe de Lúcia o enviou para Londres. Na Europa, Heitor vira uma espécie de mochileiro nômade, experimentando todos os tipos de drogas possíveis. Não há juízo de valor sobre as distintas escolhas feitas pelos irmãos, que são tratadas no filme como posicionamentos pessoais diante de um momento político e cultural conturbado.As experiências de Heitor envolvendo drogas e situações bizarras vividas em lugares obscuros são hilárias e divertem a plateia, mas esse mesmo público talvez não consiga absorver outros elementos que a diretora julga estarem presentes no filme. Avançando pelo terreno ficcional, a produção conta com a presença de Caio Blat declamando as cartas enviadas por Heitor à sua família e o interpretando. Uma interpretação realista e pungente que se alia a imagens de arquivos e depoimentos do próprio Heitor, hoje vítima de esquizofrenia.

Essa mescla narrativa nada acrescenta ao filme. A conexão entre história real e história encenada é fraca e instável, o que transforma a participação de Blat no longa em recurso vazio de linguagem. Querendo não fazer o “arroz com feijão” do gênero documental – a tradicional combinação de imagens de arquivo e entrevistas -, Lúcia quis inovar e ficou na pretensão.

Uma Longa Viagem saiu da 39ª edição do Festival de Gramado com um Kikito de Melhor Filme, prêmio dado por um júri sem muita opção diante da seleção sofrível do ano passado. Sorte da diretora, que realizou uma obra cheia de boas intenções, mas capenga na execução. Um filme particular e íntimo tanto quanto aqueles vídeos caseiros que costumam interessar à família retratada neles, mas que, invariavelmente, são tediosos para quem não participou da festa.

“Uma longa viagem” faz retrato de geração ao contar uma história de família
Por Alysson Oliveira, publicado no Cineweb, em 09/05/12

Uma combinação entre retrato de uma época, nostalgia e investigação família, o premiado Uma longa viagem, de Lucia Murat, é um filme altamente pessoal da diretora, mas que, ao mesmo tempo, tem capacidade de dialogar com diversos públicos, especialmente por conta de seu conteúdo pessoal.

Em Que bom te ver viva (1989), Lucia colocava como protagonista uma ex-presa política – vivida por Irene Ravache – cujas experiências eram baseadas nas da diretora e de outra pessoas que ela conheceu combinando o documental e a ficção. Em Uma longa viagem, Lucia radicaliza nessa experiência, colocando lado a lado o documental e a representação. Não é a ficção, mas um pouco da recriação de um acontecimento dialogando com o personagem real, o irmão caçula da diretora, Heitor.

Na década de 1970, o jovem Heitor caiu no mundo viajou pela Inglaterra, Estados Unidos, Índia, Austrália, entre outros lugares. Nesse mesma época, Lucia foi presa e torturada.  O caçula escrevia cartas e cartas para a mãe e o irmão, Miguel, contando de suas experiências, mandando presentes. Essa correspondência serve como base para o longa que, aos poucos, constrói o retrato daqueles três irmãos e do período conturbado em que vivem.

É também a época de grandes transformações, revoluções – especialmente na Europa, onde o rapaz estava.  Caio Blat ‘vive’ Heitor jovem, enquanto redige suas cartas. Lucia encontra uma saída bastante cinematográfica para criar essas ‘reconstituições’ – usando projeções sobre uma tela como fundo para as cenas do ator. O efeito é bonito, e, ao mesmo tempo, quase alucinógeno, o que vem bem ao encontro de muitas das experiências do irmão de Lucia.

O verdadeiro Heitor, por sua vez, aparece em depoimentos gravados especialmente para o filme, nos quais relembra suas experiências e as analisa sobre um novo foco, mais de três décadas depois. Ele é uma figura carismática, engraçada e cheia de histórias para contar. A trilha sonora que recupera músicas do passado (Janis Joplin, Jefferson Airplane, Caetano Veloso…) contribui na criação do clima que transita entre a nostalgia e um olhar curioso do presente que indaga o passado.

Premiado em Paulínia, Gramado e na Espanha, Uma longa viagem estreia num momento bastante oportuno, com as histórias que traz, para contribuir com a discussão da abertura de arquivos da ditadura. Ao lado de Diário de uma busca, de Flavia Castro, lançado no ano passado, o longa de Lucia tem muito a dizer e mostrar sobre uma época e personagens que a história oficial, muitas vezes, tenta varrer para debaixo do tapete.

“Uma longa viagem”

Por Antonio Carlos Egyto, publicado em Cinema com Recheio, em 03/05/12

Uma Longa Viagem é um documentário que conta com a participação de um ator, Caio Blat, por sinal premiado por sua atuação nesse filme, no Festival de Gramado 2011.  Curioso, não?  A verdade é que, cada vez mais, ficção e documentário se entrelaçam, deixando os limites entre eles muito tênues.

Podemos partir do princípio de que toda ficção vem de alguma forma da percepção do real, mesmo que esse real possa ser sonho ou imaginação.  O registro documental da chamada realidade é também uma escolha de objeto, visto de um determinado ângulo, perspectiva político-ideológica, ponto de vista filosófico, visão de mundo, crença em alguma verdade.  Enfim, a verdade é aquilo que a gente acredita que é, por mais objetivos que possam ser os fatos relatados.

Uma Longa Viagem aborda questões muito sérias.  Lúcia Murat, a diretora do longa documental, revisita seu passado familiar e sua militância política de resistência à ditadura militar, prisão e tortura.  Focaliza, porém, seu irmão caçula, Heitor, o que deu literalmente a volta ao mundo, conheceu e viveu algum tempo em países como a Índia,a Indonésia,o Paquistão e o Afeganistão, antes de Bin Laden e Bush, além das tradicionais experiências europeias, americanas e da Oceania, bem mais comuns.

Sem se preocupar em fixar raízes ou estabelecer projetos onde quer que estivesse, Heitor empreendeu uma longa jornada, que envolveu todo o tipo de experiências e o consumo de drogas em profusão, arriscando-se a ser preso (o que efetivamente ocorreu, algumas vezes) e a ter sua saúde fortemente abalada até o limite da loucura, da perda de faculdades mentais importantes.  Sobreviveu e está dando seu depoimento no filme, relembrando uma história incrível e cheia de significados existenciais.  Em busca de quê, mesmo?  Do autoconhecimento, de alguma forma, e de seu lugar no mundo, talvez.  Ou, quem sabe, em busca da própria razão de existir, se é que ela existe.

Lúcia Murat se vale de muitos registros familiares e do convívio que teve com o irmão mais velho, Miguel, médico já falecido, e como  se relacionaram com esse irmão aventureiro, enquanto no Brasil o regime autoritário apertava o cerco e fechava os caminhos da liberdade, tão buscada por Heitor.  O início da longa viagem dele foi o fatídico ano de 1969, que marcou o recrudescimento da repressão e a consequente luta armada.

Vídeos da época, imagens dos lugares visitados pelo irmão, suas cartas constantes, servem à reconstituição do período de juventude dela e dos irmãos.  É aí que entra Caio Blat, representando Heitor jovem, e colocado em frente às cenas projetadas, interagindo com elas. É realmente um belo trabalho do ator, que injeta vida nova e juventude a essa história de viagens intermináveis e à tentativa de entendê-las, pelo menos em parte, pela diretora e por seu trabalho cinematográfico.

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