Cinema documental triunfa no Olhar de Cinema

I am the people, de Anna Roussillon

I am the people, de Anna Roussillon

Paulo Camargo*

A premiação da 4ª edição do Olhar de Cinema – Festival de Cinema de Curitiba, realizada entre 10 e 18 de junho último, reunindo um público estimado pela organização do evento em 18 mil espectadores, evidenciou uma forte tendência no cinema autoral feito ao redor do mundo, inclusive no Brasil: borrar as fronteiras entre o documentário e a ficção. O filme eslovaco-tcheco Koza, de Ivan Ostrochovsky, foi escolhido como melhor longa-metragem da mostra competitiva tanto pelo júri oficial quanto pelos cinco jurados do Prêmio Abraccine (Associação Brasileira dos Críticos de Cinema): João Nunes (presidente), Paulo Camargo, Carlos Eduardo Lourenço Jorge, Pablo Villaça, Renato Hermsdorff.

O emocionante longa de Ostrochovsky é uma obra híbrida, na qual não fica claro onde termina a realidade e começa a ficção, sobre o boxeador peso-mosca Peter Baláž, atleta de origem cigana que chegou a competir nos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, para, mais velho e combalido pelas muitas lesões sofridas ao longo de sua trajetória, entrar em perturbadora decadência.

Koza foca justamente nesse período, no qual o lutador, mera sombra do que teria sido no passado, sobrevive e mantém sua família participando, sempre acompanhado de seu empresário, o implacável e algo mercenário Zvonko Lakcevic, de uma série de embates no circuito mais marginal do boxe, perdendo quase todas as lutas logo nos primeiros rounds, em decorrência de sua fragilidade física. E em troca de uns poucos e miseráveis trocados.

Embora Baláž viva (de forma bastante convincente) o papel de si mesmo (Koza, seu apelido, significa bode em seu idioma), e muitas das situações retratadas pelo longa sejam muito próximas da realidade, a narrativa é dramatizada e o boxeador atua em cenas muito bem conduzidas por Ostrochovsky, que, em afinada parceria com o diretor de fotografia Martin Kollar, faz um filme de grande impacto dramático.

Longos planos sem cortes, com a câmera estática, permitem que a trajetória anti-heróica, e algo patética de Baláž, alcancem, sem apelar a recursos melodramáticos, dolorosa potência emocional. Não menos importante é o arco dramático redentor de Zvonko, apresentado, em um primeiro momento, como um personagem unidimensional, apenas interessado em ganhar dinheiro às custas do pugislista, mas que, no decorrer da narrativa vai ganhando humanidade.

Koza, por sua vez, faz lembrar os protagonistas à deriva, alienados socialmente, do neorrealismo italiano. Impossível não ser tomado de compaixão ao acompanhar a sua jornada fadada ao fracasso, para que consiga sustentar a mulher, Misa (Stanislava Bongilajova), e a filha, Nikolka (Nikola Bongilajova).

O diálogo entre o filme e a vida real é intenso, e até ganha contornos paródicos, ainda que tragicômicos, como o período em que Koza é treinado por Jan Franek, boxeador checo aposentado que chegou a ganhar uma medalha de bronze na Olimpíada de Moscou, em 1980, mas hoje sem-teto e alcoolista.

Prêmio do público

Outro documental, I Am the People, também com forte ênfase nos personagens, foi escolhido pelo júri popular como o melhor filme, entre os dez selecionados para a mostra competitiva de longas do Olhar de Cinema, superior às das edições anteriores.

Uma informação é fundamental para se compreender como a diretora francesa Anna Roussillon consegue imprimir tamanha visceralidade a seu documentário. O fato de a cineasta ter crescido no Egito e, portanto, estar familiarizada com a cultura do país, impede-a de adotar um tom exótico, deslumbrado, ao retratar como um pequeno vilarejo no sul do país reage aos protestos desencadeados em fevereiro de 2011, na cidade do Cairo, e que eventualmente culminaram com o fim de ditadura de 30 anos do presidente Hosni Mubarak.

Ao contrário, por exemplo, de A Praça (2013, de Jehane Noujaim), indicado ao Oscar de documentário, I Am the People evita assumir um tom político ufanista em seu imediatismo, tomando partidos. A diretora demonstra estar mais interessada, por meio de uma abordagem intimista, em captar como os habitantes da localidade vão reagindo, e se posicionando, na medida em que vão se inteirando, pela televisão, sobre o que está ocorrendo na capital do país.

Seus entrevistados, ao mesmo em que falam sobre o conflito, e revelam, por vezes timidamente, suas posições, também se despem diante da câmera em outros âmbitos. Eles contam sobre as dificuldades que enfrentam para irrigar suas terras áridas, festejam uma nova gravidez, decidem se vão deixar ou não que os filhos cortem os cabelos no estilo moicano, parecido com o do jogador brasileiro Neymar. Vivem, enfim.

Essa opção por buscar o extraordinário no ordinário, possivelmente, só se torna possível porque a diretora sabe sobre quem e do que está falando, ao mesmo tempo em que deixa de realidade se desenhe diante de sua câmera. Entende que a população egípcia, ao contrário do que outros documentários mais evidentemente pró-revolucionários dão a entender, demorou para compreender o que estava ocorrendo, e é questionada muitas vezes por conta do fato de não ser egípcia.

Os personagens, uma fração da população do país, distante do epicentro dos levantes que ocorrem no Cairo, são retratados como sujeitos a despertar, até com certa relutância, de um estado de apatia, e alienação, para tomar posicionamentos com mais convicção. Talvez por conta disso, I Am the People, com suas duas horas de investigação detalhista, esteja fadado a se tornar menos datado e temporal com o passar dos anos do que outros filmes que abordam o mesmo período.

* Editor do portal de jornalismo cultural A Escotilha (www.aescotilha.com.br), professor universitário e sócio da Abraccine

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