A Mostra Territórios na 17ª CineBH: Um Novo Espaço para o Cinema Autoral Latino-Americano

por Pedro Henrique Ferreira*

Habituado a ser um festival cujo destaque normalmente gira em torno de sua programação voltada ao mercado e ao fomento de produção, a 17ª Mostra CineBH trouxe uma mostra competitiva de filmes pela primeira vez na história do evento, dedicada exclusivamente a obras latino-americanas. A edição inaugural da ‘Territórios’ deixa claro que, ao invés de longas-metragens consagrados nos grandes festivais internacionais, ela promete ser um gargalo para obras experimentais de menor repercussão, mas de igual ou superior qualidade artística que aquela América Latina que circula em Cannes, Berlim ou Veneza. Composta majoritariamente por primeiros ou segundos filmes vindos do Paraguai, Chile, Argentina, Cuba, Colômbia, Brasil e México, a competitiva entrega um justo mosaico de alguns dos mais interessantes exemplares realizados pelo cinema independente e autoral no continente.

O grande feito da ‘Territórios’ é funcionar como um gargalo nacional para esta produção afirmativamente conectada a uma idéia de latinidade, ou de sul global, que raras vezes desperta interesse de festivais de maior porte onde há larga circulação de obras destes países, mas que tem como defasagem o que foge um pouco do que é validados pelo circuito de festivais europeu. Uma espécie de versão latino-americana da ‘Aurora’ de Tiradentes, a ‘Territórios’ incorpora filmes que parecem dialogar com o mesmo cânone estético que ela, e tem como mérito expandir esta certa idéia de cinema que as impregna para além das fronteiras nacionais, pondo em diálogo conosco os nossos vizinhos que muitas vezes padecem das mesmas questões.

“Guapo’Y” – Divulgação

O grande vencedor da edição, tanto do prêmio do júri oficial, quanto o da crítica, foi “Guapo’Y”, de Sofia Paola Thorne. O filme é um contundente retrato das violências do governo ditatorial de Stroessner, que durou no Paraguai entre 1958 e 1989, através do olhar íntimo sobre  o cotidiano de uma única personagem: a ex-guerrilheira Celsa, que narra as histórias que viveu durante décadas no encarceramento. A câmera de Thorne alterna majoritariamente entre dois registros: primeiro, as imagens dos seus afazeres cotidianos e domésticos, dedicando boa parte do seu tempo às ações manuais dela no cultivo, colheita e preparação de ervas medicinais; depois, entrevistas e falas mais despojadas (às vezes não está sozinha, e sim com amigas/familiares) onde a voz canhestra da protagonista rememora os muitos episódios de seus tempos de prisioneira. Às vezes pecando pelo excesso e reiteração de imagens metafóricas, a beleza de “Guapo’Y” está nos comoventes relatos que expõe e na dignidade física tocante de sua protagonista, a fala vacilante de Celsa e tudo que ali parece nos prometer um Paraguai mais guarani e menos espanhol, uma América Latina mais indígena que européia.

Os outros dois premiados da edição foram “Puentes en el Mar” e “Diógenes”, produções que são respectivamente da Colômbia/México e do Peru. O longa-metragem de Patrícia Ayala Ruiz investe em um olhar mais humanístico sobre a comunidade portuária de San Andres de Tumaco, no bairro costeiro de El Bajito. Inicialmente, ele acompanha o drama individual de uma matriarca e a relação hiper-protetora com a qual trata o seu filho adolescente, ambos afrodescendentes de origem humilde, e o desejo à todo custo de controlar o jovem e impedir que ele seja convocado pelo narcotráfico que parece assolar o local. Depois, passamos ao lado do rapaz, o sentimento de inferioridade do moleque diante dos outros, sua angústia e ensejo por ser outra pessoa em outro lugar. Esta segunda parte é muito mais comovente que a primeira, um tanto sistemática, rígida e incapaz de extrair drama dos seus personagens, neste sumário esforço neorrealista do olhar.

Em uma mostra recheada de documentários experimentais, um dos poucos filmes que assume  frontalmente a postura ficcional é “Diógenes”, embora os signos que constrói passam por um diálogo seminal com Sarhua, na região montanhosa do Chile. O indígena andino que dá alcunha ao título vive isolado da sua própria comunidade, em uma casa na montanha onde cria os seus dois filhos, até que ele morre. O filme registra a rotina cheia de enfado dos três — preparando comida, observando as montanhas, brincando, e as idas do pai ao vilarejo mais perto para vender o artesanato que parece sustentar as poucas necessidades do trio; investindo em longos e hipnotizantes planos-sequências que parecem sair de um filme de Béla Tarr, numa elaboração de iconografia andina através do chiaro-escuro que fomenta a sensação de tormento, angústia e aprisionamento dos personagens, de nós e da própria arte ao tempo presente. Uma obra de raro esmero formal, “Diógenes” foi um dos grandes achados da edição.

Ao lado dele, um outro belo destaque foi “Otro Sol”, de Francisco Rodríguez Teare. O longa-metragem tem como dispositivo os arquivos judiciais que envolve a figura de Alberto Cándia, um saqueador chileno que teria efetuado um roubo das peças decorativas de ouro na Catedral de Cádiz, na Andaluzia, em 1978. Mas ele não investe numa reconstrução histórica do fato tanto como o toma como um irreverente mote de resistência à ditadura chilena, imiscuindo-se no deserto do Atacama para reencenar com frescor e sem nenhuma seriedade a vida dos ladinos fugitivos. “Otro Sol” aposta numa câmera trêmula a sondar a imponência do deserto, das praias imaculadas e das tempestades ruidosas por trás dos montes, ou das ruínas abandonadas que se tornaram o habitat improvisado e terceiro-mundista desta estirpe. Assim, reinventa com alguns jovens e velhos a mitologia de um Chile pecaminoso e fugitivo, uma América Latina reconhecida pelo signo atávico e bruto que é desdobrada pela violência colonial e ditatorial.

O único filme brasileiro que compôs a seleção foi “Toda Noite Estarei Lá”, um libelo de resiliência de Tati Franklin e Suellen Vasconcellos, do Espírito Santo. O excelente documentário acompanha o processo jurídico de Mel do Rosário, uma mulher trans evangélica que é violentamente expulsa pelo pastor e vexatoriamente proibida de frequentar a sua igreja depois de transicionar. A opção de uma câmera engajada é uma faca de dois gumes: se por um lado ele mapeia tanto a violência que vitimiza a população trans, quanto evoca a memória afetiva do espectador em relação àquilo do que o Brasil padeceu entre o impeachment de Dilma e o desgoverno de Bolsonaro, e com isto atinge uma grande força de eletrificação, por outro, ele termina por não acessar nem as contradições de sua protagonista, simplifica a heroína tornando ela e sua luta a metonímia da vida política nacional nos últimos anos.

Outros três filmes um pouco mais irregulares completam a seleção. “Moto”, de Gastón Sahajdacny, forja um espaço público esvaziado para dar a medida da experiência hostil que é vivida por jovens da periferia à margem de uma Córdoba segregada, produto de uma lei que permite a detenção policial arbitrária e racista. A trama documenta o dia-a-dia de Mariano pelo centro da metrópole argentina, seus trajetos de motocicleta filmados por longos travellings, seu trabalho informal com os irmãos vendendo panos de cozinha e doces nos sinais, e principalmente, seus encontros frequentes com Constanza (Constanza Gatica), uma jovem branca, burguesa e engajada nos embates políticos e sociais, cuja pele contrasta com o tom mestiço do outro protagonista. 

Já o cubano “Llamadas Desde Moscú”, de Luis Alejandro Yero, ao invés dos espaços públicos, é uma obra de confinamento. Rodado em um apartamento na capital russa nos dias que antecedem a invasão à Ucrânia, quatro imigrantes queer habitam este ‘lar’ à espera da possibilidade de retorno para Cuba. O filme peca ao apostar num retrato já um tanto desgastado de solidão e frieza, erigindo cenas onde seus protagonistas, espacialmente restritos e geograficamente isolados daqueles com quem se comunicam, assistem vídeos em plataformas e rede sociais, conversam por celular jogados na cama, imitam cantoras pops para Tik Tok, trabalham à distância, etc. 

Por fim, o chileno “A la Sombra de la Luz” organiza-se como um documentário observacional de um vilarejo chileno pouco habitado, com um imenso feitio da natureza, que convive com uma usina termoelétrica que abastece o resto do país. Este conflito nunca se desenvolve pela ausência de situações que realmente o empreguem, e daí que o filme termina por apostar em algo completamente diferentes, mais calcado na experimentação do tecido das imagens, dos efeitos de sombra, luz e movimento e dos ruídos da energia elétrica acoplados à ambientação das trilhas, mas que funciona muito menos do que é de se imaginar. 

No todo, a ‘Territórios’ deixou um ótimo cartão de visitas, exibindo obras de qualidade, interesse, e com um respiro de inovação. Promete muito em breve colocar-se no cenário latino-americano de festivais como um espaço para o cinema autoral menos badalado, e que por ventura é onde normalmente se encontram algumas das propostas mais radicais e dos filmes mais interessantes.

*Pedro Henrique Ferreira fez parte do Júri Abraccine.

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