Dossiê Raulino – Parte I: Diretor

Nota dos editores

Aloysio Raulino, fotógrafo e realizador, um dos mais generosos profissionais do cinema brasileiro, morreu em 18 de abril.

O Blog Abraccine planejou, logo após sua partida, um dossiê em sua homenagem. Os editores decidiram, todavia, segurar a publicação para esta segunda-feira (27/5), dada a proximidade a exibição de três curtas de Raulino dentro da programação da 2ª Mostra Ecofalante amanhã (28), na Cinemateca Brasileira, em São Paulo [programação aqui].

Nos textos abaixo, publicados em diferentes momentos, o leitor poderá conhecer e relembrar um pouco da personalidade de Raulino assim como as propostas estéticas dos projetos nos quais esteve engajado nas últimas quatro décadas.

Aloysio Raulino, à esquerda

Aloysio Raulino, à esquerda

Raulino, Diretor

Fala, Raulino!

Por Paulo Henrique Silva (originalmente publicado no jornal Hoje em Dia/MG de 7/7/2011)

Contando vídeos e curtas-metragens, são mais de 200 títulos como diretor de fotografia. Aloysio Raulino é um dos nomes mais requisitados do cinema brasileiro quando o assunto é experimentação. Ele está presente nos créditos de trabalhos importantes como Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, e Canção de Baal, de Helena Ignez. Vínculo com a ousadia que germinou assim que saiu da faculdade, na década de 1970, para ser realizador de seus próprios filmes.

Apesar de seu ganha-pão ser a fotografia, Raulino não abandonou o desejo de ter o controle total de suas obras, assinando 26 filmes, entre longas e curtas-metragens. Uma amostra desta vertente, ainda pouco conhecida, está presente na abertura da sessão Antologias, cartaz de hoje, às 19h30, no Cine Humberto Mauro, dentro do projeto Mostravídeo. Serão exibidos Jardim Nova Bahia (1971), O Tigre e a Gazela (1976), Porto de Santos (1978) e Celeste (2009).

“Nunca tinha imaginado ser fotógrafo, embora gostasse de mexer nos equipamentos da USP, onde me formei. Queria dirigir, mas tudo o que fiz nesta área foi de forma independente e o que mantém hoje é a direção de fotografia. As duas coisas não estão dissociadas. Como realizador, a imagem sempre teve um peso na narrativa, algo que também marca os filmes dos diretores com quem trabalhei”, observa Raulino.

Como diretor, ele pôs em primeiro plano principalmente os marginalizados sociais, como o lavador de automóveis de Jardim Nova Bahia ou os mendigos de O Tigre e a Donzela. Ele assinala que, na época em que fez os curtas, a abordagem documental e social estava em evidência. “Era uma questão não só pessoal, mas de toda uma geração. Era meio difícil não estar atento a isso. Mas tentei escapar do documentário mais convencional, daquele com depoimentos. Busquei uma narrativa um pouco diferente”, registra.

Um bom exemplo é Porto de Santos, em que Raulino fez uma espécie de “clipão”, ressaltando a poesia da imagem. “É um ensaio, bem solto, em que tive muita liberdade para falar dos trabalhadores do porto de Santos. Não se usava isso na época, o que gerou estranhamento. E fui muito cobrado para quem esperava algo mas ideológico. Era a censura do lado de cá e a classe do lado de lá”.

Raulino sempre tentou não “cair na mesmice”, atrelando-se a experiências de linguagem mais sensoriais do que sociais. Ele foi pioneiro ao entregar a câmera para seu próprio personagem filmar sua realidade. Em Jardim Nova Bahia, é o lavador Deutrudes Carlos da Rocha quem compõe os enquadramentos da segunda metade do filme.

“Ele nunca tinha mexido numa câmera. Era muito incipiente em cinema. Tanto que só tinha ido ao cinema uma vez, numa comédia de Mazzaropi. O Deutrudes achava que acontecia ao vivo, com os atores se movimentando atrás do lençol branco”, lembra.

As únicas lições passadas para o personagem foram o dispositivo de foco e o uso do tripé. “Mesmo assim ele pediu para segurar a câmera na mão, algo que pouca gente fazia naquele tempo”.

Devido a esta obsessão pela ousadia, Raulino foi um dos fotógrafos que melhor fizeram a transição da película para o digital. “Nestes últimos dois anos, fiz apenas um plano em película. O resto foi tudo em digital, que oferece maior mobilidade de tempo”, avalia.

Entre os filmes feitos neste suporte estão Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, Cartola, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, Serras da Desordem e Os Residentes. O fotógrafo destaca que estes trabalhos jamais ganhariam a tela do cinema se fossem realizados em película.

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Noites Paraguayas

Além da mesmice ou Noites Paraguayas

Por Cid Nader (originalmente publicado na Zingu! em novembro de 2009)

Egresso do cinema da Boca do Lixo paulistana, o grande – e reconhecível pelos resultados técnicos – fotógrafo Aloysio Raulino, andou também investindo na arte de dirigir (e codirigir) filmes, quase sempre no formato curto – isso, desde o final dos 60, início dos 70. Peculiar como fotógrafo, peculiar como realizador. Fez documentários, deu a voz e a câmera aos entrevistados, ousou a mais do que a coragem comum permite quando da confecção de seu único – até hoje, 2009, evidentemente – trabalho em longa-metragem. Falar da figura do fotógrafo e realizador de vários filmetes é tarefa a ser cumprida por quem tenha tino e consciência da importância dele em nosso cinema. Falar que ele talvez seja nosso melhor fotógrafo, também demandaria espaço único. Talvez faça, breve, tal empreitada, mas sem jamais esquecer o impacto e a emoção sentidos no momento em que vi pela primeira vez seu longa único, o estupendo, engraçado, singelo, Noites Paraguayas (1981-1982). Havia feito um texto para a extinta Revista Paisà, e aproveito aqui a espinha daquela minha avaliação sobre o filme.

Quando o vi numa mostra chamada O Primeiro Olhar, se não me engano, realizada no Cinesesc (São Paulo) – mostra dedicada a diretores de um único longa-metragem – percebi que havia acabado de assistir a uma obra ímpar. Filme que, já de cara, ganhava pontos por fugir da mesmice narrativa – uma facilitação utilizada por diretores iniciantes como muleta ante o medo de um primeiro tropeção –, no qual Raulino não teve medo de ousar esteticamente, para contar uma história que remete a um dos grandes dramas humanos: o homem do campo que foge da miséria para tentar uma nova oportunidade, fracassa (ou não se acostuma) e volta à origem. Tema recorrente no cinema (nas artes literárias, também), história das mais utilizadas universalmente, mas observada aqui com atenção detalhada ao personagem que vem do Paraguai para tentar a vida no Brasil – em São Paulo, mais especifica e necessariamente –, e aditivada de um humor singular (principalmente na figura do garçom meio maluquinho interpretado por José Dumont), que remete ao modo meio jocoso/largado do nosso cinema Boca do Lixo.

Cheio de imaginação, o filme já inicia mostrando uma fileira de bonecos com roupas de camponeses, cercados por uma chama propositalmente fake, numa evidente metáfora de um país e seu povo, empobrecidos, estraçalhados pela guerra ocorrida no século XIX. Aloysio, desde o início, faz perceber que seu trabalho não se instalará sobre – nem se municiará de – elementos comuns e de fácil assimilação para quem procura beleza plástica fugaz e vazia. Indo além, e fugindo ainda das “normalidades”, cria o gancho da atração para o camponês, interpretado por Osmar Afrisio, via imagem de um brasileiro muito alegre dançando e vibrando em terras de transição – no momento em que a jornada de busca por uma vida melhor já se iniciara, sem que o rumo certo, o destino ideal, estivesse definido.

Como fotógrafo que é, o diretor contou muito de sua história via imagens: após a escolha do camponês ter recaído sobre São Paulo, é criada uma “chegada triunfal” dele ao centro da cidade – caótico e seco –, quando a câmera o filma “flutuando” no meio da multidão. Como fotógrafo que é, capricha na descida de trem para o litoral e o primeiro contato com o mar, sendo que nesse momento já havia uma espécie de integração em estado adiantado com gente nova, em terra nova – há amigos novos, possíveis amores, enganadores, e os músicos, como os maiores e mais notáveis elementos físicos de ligação, de não rompimento, com a terra natal.

Também, com o olhar de quem está acostumado a ver um filme por trás das lentes, cria uma cena com soldados paraguaios mortos sob um clamor a Solano (Lopes) para que proteja um filho – fazendo esse momento um elemento cenográfico no modo quase estático, paradoxalmente lembrando coisas de teatro -, com força visual ideal para que se note o poder e a importância de um diretor que sabe manejar sem medo as câmeras. Como Raulino evidentemente havia pensado num mote de forte clamor humano, de forte apego às raízes, ele utiliza – e de forma bastante significativa e recorrente – a música paraguaia e os diálogos em guarani: se disse acima que os músicos que executam as músicas seriam um “elemento físico de forte ligação”, a complementação desses elementos com os diálogos na língua nativa, aumentam a resistência dos elos, fazendo deles algo muito mais importante como seria o cordão umbilical que não quer romper.

Por alguns instantes há aquele tom jocoso, debochado, irregular e necessário que desvia o filme do teor grave imaginado como único caminho para esse tipo de história: como já disse, brinde e bênçãos herdados dos tempos da “marginalidade”. O filme questiona a busca da felicidade: a chegada do camponês a São Paulo, embalada por música de Moraes Moreira, já elucida que a visão do novo mundo – repleta de prédios e cinza – pode significar a antevisão do paraíso para os desesperançados; para após, sim, deixar claro que ele existe sim, mas lá nos campos de seu Paraguai. Aqui não é o paraíso. O banzo não é exclusividade dos negros. Aloysio Raulino deveria fazer mais filmes.

O Porto de Santos

O Porto de Santos

Contracultura na barra pesada

Por Maria do Rosário Caetano (originalmente publicado no Correio Braziliense em 1º de outubro de 1984)

Dos seis longas-metragens exibidos na mostra Cinema Brasileiro dos Anos 80 – Diretores Estreantes, um chamou atenção por sua originalidade: Noites Paraguayas, de Aloysio Raulino. Misturando documentário e ficção, o filme corre por estradas ramificadas, construindo o que seu autor define como “cine-poema”.

Raulino é carioca de nascimento e paulista por adoção. Trinta e sete anos, 18 dos quais dedicados ao cinema. Tudo começou com a realização de filmes de curta-metragem. Até estrear com Noites Paraguayas, Aloysio tinha realizado 22 curtas. Dois deles são apaixonantes: Tarumã e Teremos Infância?, este premiado no Festival de Oberhausen, na Alemanha. Além de dirigir filmes curtos, Raulino atuou na equipe técnica de dezenas de filmes. Em 1972, como aluno da ECA-USP (Escola de Comunicação e Arte) participou de longa-metragem coordenado pelo cineasta-professor Roberto Santos, Vozes do Medo. O filme, composto de episódios, tornou-se um retrato contracultural da barra pesada dos anos Médici. Os episódios dirigidos por Roberto (Piá Sofre?), e Aloysio (Santa Ceia) foram interditados pelo ministro da Justiça, Alfredo Buzaid.

“Não só interditados”, lembra Raulino. “Na realidade o filme teve seus negativos sequestrados, depois de ser visto pelos ministros Buzaid, Jarbas Passarinho e Delfim Netto. Só mais tarde, Roberto Santos conseguiu recuperar nossos episódios, graças a uma cópia com som meio dessincronizado”.

Nos anos 70, Raulino produziu e fotografou o longa-metragem Cristais de Sangue, de Luna Alkalay, rodado na Chapada Diamantina baiana, e participou do ciclo de documentários sobre o ABC Paulista, fotografando vários filmes, entre os quais Braços Cruzados, Máquinas Paradas, de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo. Outro trabalho de Aloysio, no documentário de longa-metragem, aconteceu com Canudos, de Ipojuca Pontes.

Nos anos 80, fotografou dois filmes festejados: O Homem Que Virou Suco, de João Batista de Andrade, Medalha de Ouro no Festival Internacional de Moscou, e O Baiano Fantasma, de Denoy de Oliveira, Kikito de melhor filme em Gramado. Até setembro de 1984, Aloysio Raulino presidia a Apaci (Associação Paulista de Cineastas). Passou o cargo, em assembleia geral, a seu sucessor, João Batista de Andrade. Aloysio conversou com o Correio Braziliense, no escritório da Embrafilme, na Esplanada dos Ministérios. Ao contrário de sua imagem costumeira – tensa e brigona – o cineasta estava calmo, bem-humorado e, como sempre, atento e crítico ao “momento de extrema gravidade” vivido pelo cinema brasileiro.

CBz – Por que você escolheu o Paraguai como tema de seu primeiro longa?
-Porque o Paraguai sempre me fascinou. A guarânia marcou muito minha adolescência. Além do mais, eu queria mostrar o itinerário de um migrante latino-americano que resolve abandonar o campo, partir para a capital de seu país e, depois, para a maior cidade da América do Sul, São Paulo. Queria também remexer políticas transculturais. E aí está o mote do meu fascínio pelo Paraguai: lá o colonizador espanhol não conseguiu destruir a cultura primeira – a dos guaranis. Ainda hoje a cultura guarani se mantém íntegra no País. A maioria da população não fala espanhol.

CBz – Você já conhecia o Paraguai ou resolveu estudar sua realidade para tomá-la como ponto de partida?
Sou neto de uruguaios e morei, durante anos, em países da América Latina. Conheço bem a música do continente, principalmente a guarânia. Voltei minha atenção para o Paraguai, porém, para tentar compreender um povo que passou por duas guerras extremamente cruéis – a da Tríplice Aliança e a do Chaco – e não foi exterminado no que tem de mais forte: a cultura guarani. Nós, nas escolas brasileiras, ouvimos falar da Guerra do Paraguai, por alto. Nunca tomamos contato real com os fatos: Argentina, Brasil e Uruguai quase destruíram o país dos paraguaios. Quando a Guerra acabou, 90% da população masculina do Paraguai estava exterminada. Isto no fim do século passado (o XIX). De 1930 a 1932, o País sofreu outra guerra, a do Chaco, contra a Bolívia, por causa do petróleo. Em 1949, o Paraguai viveu uma verdadeira Guerra Civil. Foi então que o General Strossner assumiu o comando do País, que mantém até hoje. Que povo é este? Que País sofrido, mas forte, é este? Que carisma carrega a Nação guarani, para sobreviver a tantas dificuldades? Estas perguntas me fascinavam.

CBz – E como você criou o argumento e o roteiro do filme? Eles foram feitos previamente ou ao sabor das filmagens?
Foram feitos previamente. O argumento é meu e de Tânia Savietto e o roteiro final meu e de Hermano Penna. Para elaborá-lo, recorremos às pesquisas de Leon Pomer e à trilogia do Júlio Chiavenatto (A Guerra do Paraguai, A Guerra do Chaco, O Paraguai de Strossner). Não fiz, porém, um filme histórico. De forma alguma. Minha proposta era a busca do cine-poema. No meu longa de estréia, queria dar seqüência às minhas experiências narrativas desenvolvidas em 22 curtas e médias-metragens. Quis fazer um filme cuja narrativa rompesse com as estruturas do romance burguês do século XIX, de estilo bem demarcado. Fiz um filme-colagem.

CBz – E isto lhe vem causando dissabores, cobranças de um estilo homogêneo?
Freqüentemente. A Embrafilme, na qualidade de coprodutora, lamentou que Noites Paraguayas não tenha um estilo definido. Não é comédia, não é drama, não é chanchada, não é um documentário, e por aí afora. Isto, no meu filme, é intencional, pois quis fazer uma colagem. Na minha proposta não dava para tratar a vida no Paraguai da mesma forma que no Brasil. No campo paraguaio viceja uma cultura forte, orgânica, a cultura guarani. Em São Paulo, o migrante encontra uma cidade de cultura estilhaçada. Isto tinha que passar no filme. Recorro, em sua construção, à chanchada, só que de forma natural. Assisti a centenas de filmes deste gênero. Não uso a metalinguagem como fim, mas sim como meio. Adoro os filmes do Bressane, mas há que se reconhecer que a relação dele com a metalinguagem cinematográfica é um fim em si mesmo.

Em Noites Paraguayas, há muito de documentário. E tinha que haver. Fiz 22 documentários, tive contato com Joris Ivens, com Fernando Birri, com Roman Karmen, que são patriarcas do gênero. Karmen, por exemplo, estava no júri do Festival de Oberhausen que premiou Teremos Infância?, e ficou entusiasmadíssimo com meu trabalho. Queria de todas as formas me dar uma força. Com Jean-Claude Bernardet, que foi meu professor na USP, conheci o documentário mais como um caminho poético, que um documento de natureza jornalística e sociológica.

CBz – Em que medida esta sua postura incomoda a carreira comercial do filme?
Quando fiz Noites Paraguayas, senti que corria riscos. E quis corrê-los. Sabia que estava optando por um modelo amaldiçoado. Fiz um filme sem atores de novela, sem erotismo e sem estrutura linear, três princípios que regem a produção brasileira, desde os anos 70. Acho, porém, que a Embrafilme tem que ser plural, abrir espaço para produções variadas. Ela não pode amaldiçoar este tipo de filme.

CBz – Mas amaldiçoou Noites Paraguayas!
Prefiro dizer que isto é coisa do passado. Nestes dois anos em que o filme ficou na prateleira, esperando distribuição, me consumi muito, me angustiei demais. Acho, porém, que tudo está mudando. O Aurelino Machado, da Superintendência de Comercialização da Embrafilme, está mostrando interesse pelo filme, e prometeu um bom lançamento. Em março/abril do próximo ano ele deve chegar ao mercado. Confesso que acredito na democratização da Embrafilme.

CBz – Como presidente da Abraci, como você se relacionou com a Embrafilme? Como vê o trabalho do diretor-geral, Roberto Parreira?
Acho que Parreira compreende a importância das entidades de classe e dá ouvido ao que elas dizem. Como presidente da Apaci, participei de várias reuniões e sei que nossas sugestões são levadas em conta. A situação difícil, que vem afastando técnicos e realizadores do cinema, está radiografada pela gestão Parreira e ele não tem medido esforços para contornar a crise. É bom lembrar que ele levou o secretário geral do MEC, Coronel Sérgio Pasquale, ao Rio para que tomasse ciência das dificuldades da Embrafilme. Para os próximos meses, muitas medidas – por enquanto paliativas – serão adotadas.

CBz – Como você vê o momento cinematográfico nacional?
Como muito grave. Há um estrangulamento total de mercado e a produção está diminuindo assustadoramente. Para se ter uma idéia da gravidade a que a situação chegou, basta um exemplo: a Secretaria de Cultura de SP está promovendo, em convênio com a Embrafilme, um concurso de argumentos para seleção dos dez melhores. Cada um destes dez receberá cinco milhões de cruzeiros para o detalhamento do roteiro, projeto de produção, etc. Apareceram 101 projetos, muitos dos quais oriundos da Boca do Lixo. Isto é muito significativo, pois os realizadores da Boca nunca buscaram apoio de órgãos oficiais. Sempre se mantiveram trabalhando com recursos próprios. Agora, a barra pesou. Até eles estão pedindo ajuda.

CBz – Que solução há para resolver tão grave crise?
Na Secretaria de Cultura de SP, onde atuo como representante dos cineastas (na Comissão de Cinema), estamos contando com o apoio do secretário Jorge Cunha Lima. Ele está dando força à produção paulista através de dois projetos: o Concurso de Roteiros, para dez longas, e o Prêmio Estímulo, para dez filmes de curta-metragem, ao custo de 23 milhões cada um. Isto é fundamental, pois com o exercício do curta-metragem, São Paulo vem formando sucessivas gerações de realizadores. Outro ponto importante é a conquista da televisão. Com a TV Cultura, estamos conseguindo colocar o filme de curta e média-metragem no ar, graças ao programa Cine Brasil. Isto, porém, é muito pouco. E para nossa angústia, a RTC (Rádio e Televisão Cultura), que pertence ao Governo do Estado de SP, ainda não compreendeu seu papel com a profundidade necessária. O Conselho Curador do órgão segue o modelo de uma casta egípcia. O Fernando Pacheco Jordão tem planos incríveis para a emissora, mas não consegue levá-los adiante. Três membros do National Film Board, do Canadá, estiveram em SP visitando os estúdios da RTC e ficaram espantados com o que viram. Segundo afirmaram, em nenhum país do Terceiro Mundo encontraram uma TV Educativa tão bem equipada e tão mal aproveitada. No próximo ano, 40 bilhões de cruzeiros da Secretaria de Cultura serão repassados à RTC. Mesmo assim, a casta que domina a Rede continua fechada aos interesses dos artistas e aos anseios do titular da Secretaria de Cultura do Estado. A TV Cultura é muito importante. Ela atinge, atualmente, quatro milhões de espectadores nos Estados de SP, MG e Paraná.

CBz – As iniciativas que você mostrou são paulistas. E o resto do País?
Estamos trocando idéias em todos os cantos para buscar saídas. Se continuar do jeito que está, não vai dar. É preciso fomentar a indústria cinematográfica, empregar técnicos, aumentar o número de salas exibidoras. Em São Paulo, estamos procurando organismos que tenham fundos destinados ao fomento cultural. No momento, estudamos possibilidades de encontrar apoio junto ao Bandesp, através do Fundo Metropolitano de Fomento. Se a situação continuar do jeito que está, o cinema brasileiro acabará. O momento é terrível, humilhante, faz mal, dá câncer. E não vejo porque algumas pessoas estão pregando o fim da Embrafilme. Ela precisa ser democratizada, adequada aos novos tempos e não destruída. Chega de mártires. Paulo Emilio e Glauber Rocha morreram percorrendo repartições públicas e implorando apoio para o cinema brasileiro. É preciso lutar contra este momento agônico, esta paralisia generalizante.

Lacrimosa

Lacrimosa

O som e a fúria

Por Luís Alberto Rocha Mello (originalmente publicado na Filme Cultura 58 – jan/mar de 2013)

Em diversas ocasiões, Aloysio Raulino definiu a câmera como uma extensão de seu próprio corpo. Três curtas-metragens dirigidos e fotografados por Raulino nos anos 1970 e restaurados em 2009 pela Cinemateca Brasileira – Lacrimosa, O tigre e a gazela e Porto de Santos – confirmam essa íntima relação do cineasta com a fotografia: são ensaios audiovisuais que arrebatam o espectador pela força das imagens. Mas o intuito aqui não é falar desses três curtas a partir da fotografia, e sim de um outro elemento com o qual Raulino também soube lidar de forma admirável: o som e seus múltiplos significados políticos.

Lacrimosa (correalizado com Luna Alkalay, 1970) é certamente aquele que traduz com maior dramaticidade o clima de asfixia imposto pela ditadura. Compõe-se de um longo travelling de carro pela Marginal Tietê, então recém-aberta, e de vários planos tomados em uma favela, na periferia de São Paulo. O clima chuvoso torna a paisagem ainda mais desoladora. Na favela, crianças circulam pelo lixo; um morador canta algo para a câmera, em close. Mas não ouvimos a sua voz. Assim como não ouvimos nenhum som proveniente da favela ou da rodovia. A pista sonora é uma longa faixa de silêncio, quebrada aqui e ali por excertos musicais – entre eles, uma canção latina e o Réquiem de Mozart, especialmente o trecho “Lacrimosa”, usado em dois breves momentos que não ocupam mais do que 30 segundos. O silêncio é soberano – mas desafiado ao final pela canção chilena Paloma pueblo, de Ángel Parra: “Han muerto tantas palomas/de mil formas y colores/pero a la paloma pueblo/no hay muerte que la aprisione.”

O Tigre e a Gazela

O Tigre e a Gazela

Já nesse filme, portanto, insinua-se a importância da canção popular – embora cantada em outra língua – como forma de resistir e desobedecer. Seis anos depois, em O tigre e a gazela (1976), essa estratégia será aprofundada. Na faixa sonora, ainda persistem os momentos de longo silêncio. Mas eles disputam lugar com ritmos percussivos, batucadas, fragmentos de música erudita e textos de
Frantz Fanon narrados por um locutor off. Aqui, a música popular brasileira ganha maior relevância, quase sempre ressignificando as imagens. Por exemplo, quando a bela Salve linda canção sem esperança, de Luiz Melodia, dialoga com planos documentais de operários e populares em situações de ócio. Ou ainda quando a latina Pablo nº 2(Festa), de Milton Nascimento, é surpreendentemente combinada à coreografia dos passistas de uma escola de samba. Não só a trilha sonora se diversifica como provém de várias origens: fonogramas, locução gravada em estúdio para o filme e – o que é mais significativo – a voz na rua em som direto. Em dois momentos, uma mulher negra, talvez moradora de rua, rosto inchado pelo álcool, aparece cantando aos berros. No primeiro, ela canta o samba Salve a Princesa Isabel: “Todo negro pode ser doutor/Deputado, senador/Não há mais preconceito de cor”. No segundo momento, ela grita o Hino da Independência. Para além do sentido irônico que o filme empresta a essas músicas, importa o gesto libertador de cantar, aqui reforçado pelo uso do som direto em sincronismo – presente apenas nessas duas passagens.

Em Porto de Santos (1978), o som diegético parece ainda mais pronunciado. Mas se trata de uma ilusão: os sons que ouvimos destacam-se com frequência da imagem referencial. A trilha sonora compõe-se de trechos de música instrumental (Entre dos aguas, com Paco de Lucía), muitos ruídos (embarcações, docas, ambiente praiano, gaivotas, ondas de rádio, boates na noite santista) e vozes gravadas em som direto. Além disso, a locução off também cumpre uma função irônica: uma voz feminina, didática e impessoal, fornece breves dados históricos sobre a cidade de Santos. O espaço para o silêncio agora é mínimo, quase se reduz aos fades sonoros. O ruído, a voz e a música parecem ter enfim conquistado o direito à expressão – jamais como ilustração das imagens, e sim contraponto, elementos de criação poética. Daí o total assincronismo (falas desconectadas das imagens) ou a sincronização apenas aparente. Daí também um novo sentido dado à música popular. Na cena mais marcante de Porto de Santos, a que mostra um operário ou caiçara dançando de sunga a canção Amante latino (cantada por Sidney Magal), temos a síntese dessa nova postura defendida por Raulino: a música (posta sobre a imagem) não apenas como instrumento de denúncia, mas também como espaço do prazer e da sensualidade.

Do silêncio cinzento à alegria do canto e da dança, um novo entendimento da palavra “política”. Ou, como diz Fanon em um dos letreiros de O tigre e a gazela: “Apesar de toda a sua técnica e de sua potência de fogo, o inimigo dá a impressão de chafurdar e desaparecer pouco a pouco na lama. Nós cantamos, cantamos.”

Um comentário sobre “Dossiê Raulino – Parte I: Diretor

  1. Homenagem à Aloysio Raulisno, hoje às 21h Cinemateca Brasileira com os curtas O Tigre e a Gazela, O Porto de Santos e Lacrimosa seguidos de debate com a presença de Paulo Sacramento, Hermano Penna, Maria do Rosário e Kiko Goifman.

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