47ª Mostra de SP | “Sem Coração” e a arte de representar e reconstruir a memória  

por Chico Fireman*

A praia de Guaxuma, ao norte de Maceió, guarda as águas mais bonitas do litoral brasileiro. Guarda também as memórias de Nara Normande, cineasta cuja obra passa, em maior ou menor grau, pelo lugar onde viveu a juventude e suas descobertas. O cenário e, mais do que isso, a atmosfera que conheceu por lá, estão presentes em “Sem Coração”, curta que dirigiu ao lado do amigo Tião. A dupla parte desta relação de Nara com suas lembranças — as personagens são representações de garotos e garotas reais que povoaram sua adolescência, pessoas que ela conheceu ou que, no caso da jovem cujo apelido dá nome ao filme, nunca conseguiu encontrar, mas cuja “lenda” de carregar um marcapasso sempre esteve presente nessa época de sua vida. É aí que começa uma relação com a memória que vai se sofisticar a cada vez que se volta a ela.

A ideia de retomar uma obra para expandi-la pode parecer confortável, além de pouco original: afinal, o que justificaria contar de novo uma história que você mesmo já contou? Mas a reconstrução de “Sem Coração”, agora no formato de longa-metragem, encontrou caminhos que se justificam pelo que se vê na tela e pelo representado além dela. Para além da oportunidade de trabalhar com mais recursos — o filme é uma coprodução com a França –, Nara e Tião voltam àquele conceito olhando para o material original como se fizessem um estudo a partir dele. Não é um mero prolongamento, mas uma relação de desdobramento de uma obra em múltiplas camadas. Enquanto o curta se concentra no encontro entre a personagem-título e Leo, garoto que vinha da cidade grande para a praia, o novo filme usa a história desta menina para entrar num universo infantil-adolescente aberto a todas as experiências, onde classes sociais comungam com mais facilidade.

"Sem Coração" (2023), de Nara Normande e Tião - Divulgação
“Sem Coração” (2023), de Nara Normande e Tião – Divulgação

É uma chave diferente que inclui o “evento” relacionado à personagem no curta como um ponto dentro do fluxo de um cotidiano vivo, que, às vezes, é um retrato puro e orgânico de cenas banais, pequenos exercícios de liberdade, mas que, em seus aspectos mais narrativos, abre espaço pra desenvolver melhor os novos personagens. E é aí que os diretores se relacionaram com a memória de uma maneira completamente única, não apenas retomando as lembranças da juventude de Nara, mas as da dupla como um todo em relação ao curta realizado quase uma década atrás. Esses novos personagens que o longa apresenta são, em grande parte, baseados no que aconteceu com os atores do curta depois das filmagens, histórias de crime e brutalidade que não deixam o filme alheio à violência de um estado onde a força é uma instituição. “Sem Coração”, o longa, é sobre a adolescência de sua diretora, mas também sobre o cinema de seus diretores. 

É um filme sobre a memória, a memória representada, a memória do hiato e a tradução destas três camadas numa trama, numa atmosfera, num sentimento. Não se faz filmes assim hoje em dia.  

O elenco jovem, mesmo sem experiência em atuação, é de um frescor contagiante e facilita o registro afetivo que Nara e Tião procuram entregar. Do elenco original, ficaram apenas Eduarda Samara, que volta à personagem-título, e Maeve Jinkings, que é mãe da nova coprotagonista. Essa mudança — sai Leo e entra Tamara, vivida pela promissora Maya de Vicq e inspirada na própria cineasta — talvez seja a transformação mais essencial ao projeto. Mais do que inverter o fluxo de encontro das personagens — enquanto ele chegava em Guaxuma, ela tem data marcada para ir embora –, a troca permite que a personagem se comunique mais diretamente com a própria Nara, promovendo seu encontro inédito com Sem Coração, a menina que nunca conheceu, mas que imortalizou no cinema. Um capítulo final nesse jogo de representações da memória que traz um elemento ainda mais pessoal para um filme que pulsa o tempo todo e que entrega um segredo na sua mão.

*Chico Fireman fez parte do Júri Abraccine.

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