Chantal captou a grandeza dos pequenos gestos

Cena de "Jeanne Dielman 23 Quai du Commerce 1080 Bruxelles"

Cena de “Jeanne Dielman 23 Quai du Commerce 1080 Bruxelles”

Bruno Ghetti*

Chantal Akerman é um caso raro de unanimidade: todos reconhecem seu papel revolucionário. Para um número expressivo de cinéfilos (e quase a totalidade dos acadêmicos), ela merece respeito por ter criado uma obra cinematográfica muito peculiar, marcada por um meticuloso estudo dos gestos humanos, uma atenção especial às questões da mulher e pesquisas da percepção do tempo pelo espectador. Mas para o chamado “grande público” (e, não se pode negar, mesmo para uma certa parcela da cinefilia highbrow), sua importância é maior no campo da medicina: com seus filmes arrastados, deu relevantes contribuições para o tratamento da insônia.

Brincadeiras à parte, o fato é que a diretora belga reuniu ao longo de seus mais de 40 anos de carreira um bando enorme de detratores e outro menos numeroso (mas bastante apaixonado) de admiradores. Foi um caso típico de “ame ou deixe”: seu cinema de longos planos-sequência, pouquíssima ação e ideias pretensiosas tem o poder magnético de atrair certos cinéfilos com a mesma força que repele os demais.

Nascida em Bruxelas em 1950, de ascendência judaica (sua mãe polonesa foi sobrevivente de Auschwitz), Chantal começou a carreira no fim dos anos 60, influenciada pelo cinema livre e experimental feito por cineastas de vanguarda americanos da época, mas sobretudo pelo cinema de Jean-Luc Godard. Ainda jovem (aos 18), investiu pela primeira vez em um cinema também cheio de liberdade e experimentação (o curta “Saute Ma Ville”, de 1968), dando início a uma trajetória bastante particular, com um cinema inquieto, sempre tentando driblar as limitações da linguagem cinematográfica. O diálogo com outras formas de arte era constante, e foi o desembocar de um caminho perfeitamente natural quando Chantal resolveu, em meados dos anos 90, se lançar como artista visual, trabalhando sobretudo com videoinstalações.

Duas obras muito representativas de Chantal como cineasta e como artista visual puderam ser conferidas pelo público brasileiro no segundo semestre de 2010. Uma delas foi a instalação “D’Est”, que integrou a 29ª Bienal de São Paulo; a outra, o longa “Jeanne Dielman” (“Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080, Bruxelles”), de 1975, o filme mais famoso e cultuado da diretora, que acabava de ser lançado no país em DVD.

A instalação “D’Est” foi apresentada pela primeira vez como filme, em 1993. Trata-se de um documentário experimental sobre a vida em alguns locais do leste europeu depois do fim da União Soviética. Sem diálogos, traz imagens da época registradas em países como Polônia, Ucrânia e Rússia. Elas mostram pessoas aguardando em filas, esperando o trem em estações, andando nas ruas, onde se apresentam artistas performáticos. São mostradas paisagens urbanas, litorâneas e campestres, em dias quentes, gelados, com chuva, com vento… Um painel de uma Europa que apenas aguardava (com apreensão e alguma esperança) o que o futuro lhes traria.

Em setembro de 2010, Chantal concedeu uma entrevista sobre “D’Est” e “Jeanne Dielman” a este crítico que vos escreve. Vale aqui contextualizar a semitragédia que foi a experiência. Para começar, a ideia era receber o repórter em seu apartamento, em Paris, mas a cineasta acabou preferindo fazer a entrevista por via telefônica. Menos de 24 horas antes da conversa, este jornalista acabava de aterrissar com suas malas em Paris, onde moraria por um ano; não tinha celular francês e nem telefone fixo, então precisou descobrir às pressas uma lan house que tivesse cabines com aparelhos telefônicos com entrada para plug de gravador – o que não foi nada fácil. Feito isso, novo problema: Chantal se preparava para uma viagem de dez dias ao Camboja, então parecia impaciente do outro lado da linha, apressada, dando respostas curtas e sem um humor muito aguçado. E para completar: ao colocar o fone no gancho, ao fim da entrevista, este crítico percebeu que o gravador não havia registrado sequer um segundo da conversa. Louvado seja o hábito de tomar notas durante entrevistas, que foi o que tornou possível preservar as poucas – ainda que valiosas – aspas de Chantal que traz este texto…

Mas voltemos ao que importa. “A ideia inicial [de ‘D’Est’] já era fazer uma instalação. Mas não havia dinheiro o suficiente, então acabou sendo primeiro lançado como filme. Dois anos depois, já com recursos, aí pude concluir o projeto inicial”, disse a diretora, ao telefone. “D’Est” já foi apresentada em vários países, em diversas épocas distintas. Não era a primeira opção da artista quando convidada para a Bienal – ela preferia mostrar “Maniac Summer”, sua instalação mais recente na época, ideia rejeitada pela curadoria da exposição paulistana.

Já mais de 20 anos depois da queda do Muro de Berlim, a obra talvez corresse o risco de soar datada. As pessoas da década de 2010, já tão diferente das do começo dos anos 90, seriam tão afetadas pela instalação como no período em que foi criada? “Não sei”, respondeu Chantal, sem demonstrar o menor interesse em saber. “É uma obra que capta o comportamento de alguns grupos de pessoas, seus sons, seus gestos. Vai além de ser apenas uma obra sobre o fim do comunismo da Europa, extrapola isso. Pensar assim seria reducionismo”.

Desde o início da carreira, Chantal esbravejava contra os que insistiam em dar rótulos a sua obra justamente para evitar os tais “reducionismos”. Cineasta “feminista”, “minimalista” e “hiperrealista” foram alcunhas que a belga costumeiramente leu e ouviu de críticos sobre si. Mas a artista insistia na pluralidade de sua obra. “Os rótulos reduzem as possibilidades que a obra traz embutida em si. Meus trabalhos, por exemplo, têm um elemento ou sua origem em dados biográficos meus. Mas de forma alguma se restringem a falar sobre mim”.

Rotulações ou não, feminismo, minimalismo e hiperrealismo são três termos que podem muito bem ser aplicados a “Jeanne Dielman”, filme de mais de três horas, com pouquíssimos diálogos, cenas extremamente longas e quase nada de ação que se tornou um marco na carreira de Chantal. O longa também é um enorme tour de force no papel principal da extraordinária atriz Delphine Seyrig (uma das preferidas de Alain Resnais, Luís Buñuel e Marguerite Duras), também cineasta experimental e feminista militante.

Jeanne Dielman é uma dona de casa quarentona, mãe de um adolescente, que leva uma vida praticamente sem emoções. Ela levanta cedo, arruma a casa, acorda o filho e apronta seu café da manhã. Faz compras, prepara a comida, descansa um pouco, arruma tudo de novo, vai dormir. No dia seguinte, segue a mesma rotina. E o mesmo se dá no dia posterior. E possivelmente no seguinte. O mais próximo de emocionante em sua vida é quando experimenta colocar mais água em uma receita gastronômica e tentar ver se o sabor sairá melhor ou pior. Ou quando recebe homens em seu apartamento para os quais realiza serviços sexuais – não por prazer, apenas para ganhar a vida. Mas Jeanne já incorporou a venda do seu corpo à rotina, e isso é tão desprovido de emoção e tão rotineiro quanto descascar batatas ou dobrar a roupa de cama.

O filme se debruça sobre os gestos cotidianos de Jeanne. Se ela vai à cozinha tomar um café, a câmera mostra desde a entrada da personagem no cômodo até o último gole da bebida, passando por atos (totalmente dispensáveis no cinema mais comercial) como pegar o pote de café, botar a água para ferver, esperar a fervura, coar o café, esperar esfriar e sorver por completo o conteúdo da xícara. A impressão de tempo real aflige e entedia o espectador, ampliando a noção de monotonia da vida da personagem.

Ao saber que o filme seria lançado em DVD no Brasil, a diretora tomou um susto e, com certa indignação, disse que não havia sido informada sobre isso. Depois, refeita, comentou: “Antes, ninguém havia dado tanta atenção aos gestos de uma personagem, que podem revelar muito. O filme foi revolucionário nesse sentido”.

Segundo a cineasta, cada mínimo detalhe, seja um espanar de poeira da mesa ou um ângulo de olhar no espelho, foi previamente calculado. “Meus filmes muitas vezes parecem cheios de improvisos, mas eu garanto que eles são tudo, menos improvisados. Ao contrário, as cenas são bastante pensadas antes de serem filmadas. Eu escrevo tudo o que vou colocar na tela, com precisão. As ideias surgem em minha mente. Intuitivamente, eu as coloco de uma certa maneira no papel e, em seguida, em cena”

Gestos resignados, delicados, obsessivos, nervosos e ternos. Alguns libertadores (quando Jeanne escova os cabelos diante do espelho, por exemplo). Não era um filme para qualquer atriz: exigia alguém com uma compreensão total da personagem e de seus dramas, capaz de ostentar um gestual de “mulher comum”, mas, ao mesmo tempo, com algo de hipnótico em sua figura e em seus movimentos. Nesse sentido, a escolha de Delphine Seyrig foi um dos maiores acertos de casting da história. “Jeanne Dielman” deve muitíssimo a ela – com a atriz errada, o filme correria o risco de ser um enorme fracasso e se tornar apenas o filme maçante que parte dos espectadores insiste em considerá-lo.

“Não me baseei em ninguém em específico ao criar a personagem Jeanne. Mas a gênese dela certamente está em diversas pessoas que eu conheci. Diversas mulheres que gesticulavam de maneira parecida, se vestiam e se penteavam daquela forma. Que tinham tido uma história de vida como a de Jeanne.” Já que Jeanne Dielman quase nada fala sobre si, o que exatamente ela pensaria? Possivelmente nada muito elaborado – é exatamente para evitar reflexões mais sofisticadas sobre sua vida desinteressante que Jeanne parece se apegar às tarefas domésticas e aos rituais do dia a dia.

A câmera de Chantal tem um estilo voyeur. A certa altura, Jeanne deixa o banheiro e parte em direção à cozinha. A câmera (estática) a mostra deixando o cômodo. Em seguida, vê-se a imagem do corredor, por onde Jeanne passa. Na cena seguinte, uma câmera na cozinha (sempre estática) a mostra entrando no cômodo. Mas ela lembra que não apagou a luz do banheiro e decide voltar. Novamente, entra em ação a câmera do corredor, que mostra Jeanne indo ao banheiro. Em tempos de “Big Brother” e programas televisivos afins, não parece tão absurdo ver paralelos e chegar até à inusitada ideia de que Jeanne Dielman seja uma espécie de protótipo involuntário dos modernos “reality shows”. Pela primeira (e única) vez na entrevista, Chantal se descontraiu – pareceu se divertir com essa comparação meio estapafúrdia (soltou uma gargalhada ao ouvi-la), mas duvidava que algum desses programas tivesse se inspirado em seu filme. “É uma observação interessante, mas é improvável. Eu não tenho tempo para assistir à TV, menos ainda a esses programas. Nem posso falar sobre eles, com sinceridade.”

“Jeanne Dielman” é um filme absorvente, de uma maneira estranha e até meio perversa. Tem efeito cumulativo: compreende-se melhor Jeanne quanto mais tempo se fica diante dela. Os que conseguem aguentar a primeira hora sem desistir (ou pegar no sono) tendem a querer ir até o fim, mesmo não gostando tanto do que veem. Nem que por pura curiosidade de ver até onde a (não) ação vai chegar. E se alguém acha que muita coisa de diferente acontece no tempo restante, que leia esse spoiler: não, quase nada acontece (só bem no final do filme). Como quase nada “acontece” em “D’Est”. Ou em qualquer outro filme da cineasta/artista.

“Sempre tentei me aproximar do grande público, mas ele parece não querer muito se aproximar da minha obra. Já me ressenti disso. Mas hoje não. Penso: ‘E não é melhor assim?’.”

* Bruno Ghetti é colaborador do jornal “Valor” e do UOL, colunista de cinema do site da MTV e autor do blog Abrir o Olhar
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