Tempo de Aquarius

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Foto: Victor Jucá


Marcelo Lyra*

Sônia Braga faz Clara, uma jornalista que já foi famosa e hoje é a última moradora de um pequeno prédio antigo (desses de três andares), à beira da praia de Boa Viagem, no Recife. Ele foi quase todo adquirido por uma construtora que pretende construir no lugar mais um espigão de 30 andares, do tipo que vem infestando cidades onde prefeitos e vereadores estão mais interessados nas contas bancárias que na qualidade de vida de vida dos seus eleitores. Detalhe, no Recife, esses espigões costumam ter suas sombras projetadas na praia depois do meio dia, ou seja, praticamente não dá para tomar sol na praia. É uma situação auto predatória que beira o patético: a pessoa compra um apartamento na beira da praia mas não pode tomar sol em frente de casa. O filme abre com uma foto da praia onde a sombra dos prédios esconde o Sol da faixa de areia.

“Aquarius” não retrata apenas a clássica luta de uma pessoa contra uma grande corporação, mas mostra com sensibilidade poética a solidão de uma mulher na terceira idade. Uma viúva cujos filhos mudaram para longe, a maioria dos amigos e a popularidade da juventude se foram. Também lutou contra um câncer no seio, cujas sequelas afetam sua vida até hoje, e agora precisa enfrentar um inimigo que quer tirá-la do local onde vive.

Parte da solidão é quebrada justamente pelo insistente assédio da construtora, que deseja adquirir o último apartamento que falta para demolir o edifício Aquarius. Oferecem um valor acima do mercado. Só que a mulher viveu ali a melhor parte da vida, viu os filhos crescerem. Cada cômodo lhe traz lembranças dessa época e morar em meio a seus velhos discos, livros e álbuns de fotografia dá sentido à sua vida.

Valores sentimentais não entram na contabilidade das grandes empresas e diante do que lhes parece uma recusa inexplicável, a construtora apela, tentando tornar insuportável a vida da moradora. Entre outras coisas, colocam madeira com colônias de cupins nos apartamentos vazios e emprestam o que fica bem acima dela para festas e orgias de amigos.

Em uma dessas festas, temos uma das cenas mais fortes e representativas da personalidade de Clara. Ela sobe para reclamar do barulho, encontra a porta do apartamento semi aberta e se depara com vários casais transando. Ela hesita, volta a seu apartamento e toma uma atitude surpreendente, que convém não contar para não tirar o impacto. Mas pode-se dizer que, ao invés de irritar, a orgia despertou sua libido.

É essa energia de vida com que reage às adversidades que torna Clara uma personagem marcante. Nesse ponto, vale destacar a boa atuação de Sônia Braga, particularmente eficiente nos momentos de fúria, dos quais nos torna cúmplices. Aliás, não lembro de outra atuação tão enérgica na carreira de Sônia.

“Aquarius” transita entre a época de sua juventude e os dias atuais ao sabor das lembranças de Clara e essas idas e vindas permitem entender melhor sua personalidade, sua relação com os filhos e com o mundo que a cerca.

Sua luta para continuar no lugar onde é feliz é um microcosmo de tantas cidades que vão se descaracterizando, e ecoa, entre outros, o relativamente recente conflito de Estelita, que mobilizou moradores do Recife para impedir que o terreno fosse ocupado pela especulação imobiliária. Kleber Mendonça é um cineasta urbano por excelência. Já tinha mostrado isso no longa anterior (o ótimo “O Som Ao Redor”) e nos premiados curtas “Recife Frio” e “Eletrodoméstica”. Ele canta sua aldeia como poucos. Não por acaso, é universal.

PS- Por uma dessas coincidências da vida, o filme permite uma curiosa comparação com a presidente Dilma, que no passado também lutou contra o câncer e hoje enfrenta com vitalidade grandes corporações que querem tirá-la do lugar onde mora.

* Marcelo Lyra é professor e crítico de cinema; texto inédito, exclusivo para o site da Abraccine

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