Notas sobre uma tendência do documentário brasileiro

"Olhando para as Estrelas", de Alexandre Peralta.

“Olhando para as Estrelas”, de Alexandre Peralta.

Willian Silveira *

Eduardo Coutinho nos deixou há algum tempo. Em fevereiro, serão três anos sem o diretor de Cabra Marcado para Morrer (1984), Edifício Master (2002) e Jogo de Cena (2007). Nesse ínterim, a infelicidade pela perda do mais importante documentarista brasileiro se amplifica na constante – e inevitável – ausência dos seus filmes – do seu modo de pensar a imagem e da inventividade do seu cinema.

É durante um evento como a Mostra de Cinema de São Paulo que a engenhosidade de Coutinho como documentarista pode ser constatada de forma ainda mais aguda. Para além das centenas de títulos de diferentes países, a 40a edição do evento cinéfilo mais importante do calendário nacional possibilitou ao público se debruçar sobre a produção dos nossos novos realizadores. Entre os cerca de vinte filmes de diretores brasileiros estreantes na programação de 2016, nove eram documentários:

–          Axé: Canto do Povo de um Lugar (de Chico Kertész);

A música é um dos temas mais bem sucedidos nos documentário nacionais. Neste caso, temos um passeio pela origens da música baiana na busca por construir a trajetória do Axé, um ritmo híbrido que tomou conta do país a partir dos anos 90, transformando-se em um produto cultural expoente da cultura brasileira em todo mundo.

–          Banco Imobiliário (de Miguel Antunes Ramos);

A expansão desenfreada das cidades brasileiras trouxe à tona a especulação imobiliária. O documentário apresenta, por meio de um tom declaradamente irônico, os diversos responsáveis pelo aumento nos preços dos imóveis, de corretores à consumidores até agentes públicos.

–          Capoeira, Um Passo a Dois (de Jorge Itapuã) ;

A relação delicada de um casal unido pela capoeira mas que tem de conciliar a relação com a hierarquia mestre-discípulo do jogo. O filme acompanha a ascensão da capoeira pelo mundo à medida que mostra a desestabilização do casal. Há uma mudança interessante no protagonismo narrativo, que passa do masculino para o feminino.

–          Divinas Divas (de Leandra Leal)

Um encontro ao mesmo tempo comemorativo e nostálgico, que reúne e recupera as histórias de artistas travestis precursoras no Brasil, como Rogéria Astolfo, Divina Valéria e Jane Di Castro.

–          Górgona (de Pedro Jezler e Fabio Furtado)

Acompanha a montagem da peça de teatro homônima, dirigida pela atriz Maria Alice Vergueiro. Debate a posição do teatro no meio cultural e as dificuldades de realização apesar do reconhecimento de crítica e público. O filme parte dos bastidores dos ensaios, como um making off, para descortinar a condição da arte na sociedade atual.

–          Olhando pras Estrelas (de Alexandre Peralta);

Acompanhamos duas bailarinas da única escola de ballet para cegos do mundo. O tema surpreende o público, que se mobiliza emocionalmente com as trajetórias pessoais de superação.

–          Olhar Instigado (de Chico Gomes e Felipe Lion)

A dupla de diretores apresenta três níveis de olhar sobre a cidade. Coabitam em tela desde três artistas em níveis distintos de reflexão sobre o próprio trabalho. É um filme cru, no qual o fotograma preenchido pela adrenalina deixa de lado a problematização necessária para um longa que decide pensar a cidade desde dentro.

–          Somos Todos Estrangeiros (de Germano Pereira)

Um filme à deriva no tempo e no espaço. Busca sensibilizar por meio da máxima sintetizada no título – somos todos estrangeiros. Acompanhamos estrangeiros em diversos níveis que se encontram em São Paulo. O resultado é caótico. Na tentativa de ser comovente, o filme acaba por não ter impacto.

–          Um Casamento (de Mônica Simões)

Resgata o casamento dos pais, na capital baiana em 1950, a fim de construir, para si e para o público, a imagem do pai da diretora. Nesse processo de ultrapassar a ideia de paternidade e transformá-la na identidade de um homem, Mônica joga luzes sobre a perspectiva parcial e contextual que temos sobre as pessoas.

Os números indicam uma relação bastante interessante entre o cineasta brasileiro e as suas predileções cinematográficas. Praticamente metade dos diretores escolheram estrear por meio do documentário. Seja por uma convicção pessoal seja por uma decisão estratégica, servindo de porta de entrada para a ficção, o que fica é a sensação de que parte considerável da nova geração de diretores nacionais nutre uma relação de intimidade com o documentário, encontrando nas especificidades do gênero a melhor maneira para contar as suas histórias. Essa decisão pode estar determinada, claro, por um fator que favorece o documentário em detrimento da ficção. Os avanços tecnológicos voltados para o audiovisual baratearam de maneira substancial as filmagens, tornando a produção exequível mesmo com poucos recursos. Nesta busca por acessibilidade, o documentário surge como o formato mais propício.

Os títulos exibidos pela Mostra de SP permitiram constatar três grandes caminhos estéticos seguidos pelos novos documentaristas brasileiros: o tradicional, o realista e o de linguagem. Contudo chama atenção – ainda que não surpreenda – a preferência por uma das escolhas estéticas. Se Axé, Banco Imobiliário e Divinas Divas são três títulos construídos junto à tradição documental, cuja investigação temática se desdobra de maneira mais sóbria, distante e pontual, Um Casamento, por sua vez, surge isolado no seu trabalho de decupar a linguagem, em um processo ora metafílmico ora de apropriação da ideia de Imagem – por vezes irrestrita e, portanto, eticamente incômoda. Os demais cinco títulos – Capoeira, Górgona, Olhando pras Estrelas, Olhar Instigado e Somos Todos Estrangeiros – dão conta de apontar uma tendência no nosso cinema. Se não emergente, a escolha pelo registro realista tem se mostrado a opção estética constante nos documentários brasileiros. Se tomada fora de um contexto e ausente de propósito, qualquer decisão cinematográfica limita o seu resultado enquanto artifício narrativo. No instante em que uma via estética acaba imposta pela obrigatoriedade ou pela praticidade o que temos é um rebaixamento do valor fílmico. Enquanto exercício de liberdade com finalidade criativa, a arte é o campo da permissão. É no que tange, entretanto, a sua passagem de condição para obra artística que a linguagem empregada assume contexto, função e valia, em um conjunto simbólico encaixado que não responde – ou responde exatamente ao oposto – à noção de utilidade. Um filme pode ser útil – como são os trabalhos com finalidades didáticas e institucionais – sem sequer ter mérito artístico, por exemplo. Por outro lado, a obra – assim denominada pelo mérito artístico – se desprende sem culpa de qualquer utilidade prática.

Grosso modo, o realismo dos documentários brasileiros nasceu de uma necessidade. A constância enquanto estética, porém, se alimentou de uma combinação inusitada de falta de domínio de linguagem e facilidade narrativa. O realismo cru empregado por boa parte dos novos realizadores pouco se relaciona com os vestígios de um cinema posicionado como instrumento de trabalho antropológico e social, como o desenvolvido pela linhagem documental de Jean Rouch (1917 – 2004), por exemplo. O vício do real surge no panorama do documentário nacional unicamente para simplificar a produção – algo bem distinto de democratizar a produção -, fazendo com que se abra mão da inventividade e da reflexão acerca do objeto fílmico em nome de um traço tomado, de maneira equivocada, como marca de origem.

* Willian Silveira é crítico de cinema. Escreve para os sites Papo de Cinema e Estado da Arte – Estadão

 

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