O jovem brasileiro nesse espaço da cidade brutalizante

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Filipe Furtado*

Uma imagem recorrente nos filmes brasileiros que integravam o recorde de novos diretores do prêmio Abraccine é a do jovem brasileiro nesse espaço da cidade brutalizante sobretudo num ambiente de rápida transformação da década passada. É este o ponto de partida do vencedor Meio Irmão, de Eliane Coster, em O Pequeno Mal de Lucas de Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zethune, de forma mais indireta em Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, de João Salaviza e Renée Nader Messora, e Sócrates, de Alex Moratto e de maneira mais desinteressada em Bia 2.0 , de Cristiano Calegari e Lucas Zampieri. Mesmo um documentário como Meu Nome Daniel, muito mais preocupado em lidar com a construção de uma trajetória através da formação do cineasta, vê necessidade de forma desacertada fazer este confronto no seu gesto final.

As ideias de abandono, morte e tradição são recorrentes, com a figura de um pai morto, morrendo ou desaparecido figurando ao longo da maioria dos filmes. Meio Irmão começa com desaparecimento da mãe e Sócrates com o corpo sem vida da mesma encontrado pelo personagem. A metáfora dominante de O Pequeno Mal é a cratera do deslizamento do metro paulistano em 2007, com a doença e mal-estar contaminando a narrativa. Doença e mal-estar também contaminam Chuva é Cantoria, que conta com a vantagem de finca-los de forma mais clara num deslocamento cultural. A doença do pai termina por tomar conta de Bia e doença é claro o mote de Meu Nome é Daniel.

O espaço social em rápida transformação recorre em todos esses filmes, sendo central sobretudo no confronto entre o apelo da tradição e o desejo de fuga de Chuva é Cantoria. Merece também um destaque para o trabalho com os vídeos familiares de Meu Nome é Daniel que como o colega de júri Roger Lerina bem apontou fazem uma crônica preciosa da classe média brasileira ao longo dos últimos 30 anos sem nunca chamar atenção para si mesmo. É útil apontar que vários desses temas também recorrem em outros filmes fora do recorte do prêmio como a situação limite de Sequestro Relâmpago da Tata Amaral e o conflito geracional alegórico de Ilha de Ary Rosa e Glenda Nicácio.

Nem todos esses filmes lidam com esses elementos com o mesmo sucesso. Bia 2.0 é quase doentio no seu desejo de joga-los para debaixo do tapete em função de um sorriso forçado perante ao mundo e as opções narrativas mais pueris. Em O Pequeno Mal, o doentio é o ponto de partida já dado no título, mas o filme nunca consegue sair de um estado de mal-estar performático e escapar do esquematismo estético estéril. Ambos por caminhos opostos sugerem a mesma adolescência mal resolvida.

Mais interessante é Sócrates que procura se aproximar da personagem título, um jovem gay negro de classe baixa de Santos. Há urgência narrativa no desespero monetário em que ele se encontra e um interesse real nas dificuldades sofridas por um homossexual sem suporte afetivo e financeiro. Há também por parte do diretor Alex Moratto bem mais condescendência do que o filme acredita e em algum ponto da narrativa rompe’se a barreira entre a observação de um problema e a exploração do mesmo. No seu último ato Socrates descende ao miserabilismo puro.

No outro extremo se encontram Meio Irmão e Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos. O segundo é certamente o filme mais sofisticado da seleção, com um olhar apurado bem ancorado em ideias correntes do cinema de festivais contemporâneo. Nos seus melhores momentos elas ajudam o filme a se aproximar do seu universo, nos piores sugere sugerem Messora e Salaviza como pouco mais do que diluidores competentes. Há muito em comum entre o o olhar etnográfico de deslocamento da juventude indígena proposto pelo filme e o que Salaviza lançou sobre a juventude portuguesa em Montanha, primeiro longa do cineasta no qual Messora foi diretora de fotografia. O que reforça que o desejo de afirmação de um processo autoral se impõe muitas vezes sobre o universo retratado. Há muita força nas sequencias que se focam no deslocamento e recusa do protagonista, sobretudo no longo entrecho no qual ele abandona a aldeia pela cidade.

Meio Irmão se destaca pela aspereza e secura do registro. Uma zona leste paulistana apresentada com distanciamento e brutalidade. O abandona afetivo, social e governamental dão o tom da narrativa que por vezes sugere o cinema dos irmãos Dardenne. O filme se beneficia bastante da atuação da estreante Natalia Molina que faz um dos retratos mais honestos e menos acessíveis de adolescência do cinema brasileiro contemporâneo. O mal-estar aqui surge naturalmente de questões práticas de cada personagem, no lugar de um sentimento imposto de princípio. A destacar a ausência de saídas conciliadas e resoluções fáceis, diante deste abandono completo, a parte alguns momentos de ternura entre amigos e família, sobra para cada um dos jovens se virar como podem.

Dentro do retrato proposto pela maioria desses filmes, sobra uma negociação constante com um espaço social em fluxo que parece sempre pronto para engolir a todos.

*Filipe Furtado foi membro do Júri Abraccine na 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

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