54º Festival de Brasília: Alice dos Anjos

* Marcos Pierry

Há um cinema baiano pós Café com Canela (2017), não necessariamente por efeito deste longa-metragem de Ary Rosa e Glenda Nicácio, que divisa uma pauta e um tratamento de delicadeza com o material abordado que vem chamando a atenção. Tanto mais ao se defrontar com o componente de subjetividade na lida com os mais diversos aspectos – étnicos, de classe ou gênero, tempo histórico etc. – de personagens e tramas. Açucena, de Isaac Donato, e Rosa Tirana, de Rogério Sagui, ambos de 2021, podem ser apontados como dois exemplos mais recentes desse surto.

Agora, no Festival de Brasília, aparece “Alice dos Anjos”, de Daniel Leite Almeida. Os filmes até aqui citados são bem diferentes entre si, com propostas e encaminhamentos muito distintos. É uma nuança do delicado que sobressai na virtual, e diversificada, sintonia do conjunto. Talvez uma sintonia de sensibilidade e postura para o entrecho de sonho e distopia que se alonga aqui e ali, na tela e na realidade desses tempos mais que bicudos.

Daniel fez a opção pelo sonho e a ele não teme. O seu filme é uma fábula, um quase musical, que amarra outras histórias mágicas da imaginação e da realidade na vara de condão da protagonista, a menina Alice interpretada com arrebatamento por Tiffanie Costa. A bordo do carro da mãe (Dayse Maria), que dirige rumo ao sítio da matriarca, Alice, no banco de trás, ouve Fabiana (Eloá Miranda), a irmã mais crescida, ler em voz alta a conhecida história de Lewis Carroll. A menina compara o que diz a irmã com a prosódia da vó Indira (Cris Magalhães), a quem vai reencontrar por motivo de saúde da virtuosa velha.

A partir daí, o mundo da Alice de Carroll e a realidade daquele lugar irão se cruzar na tela segundo a ótica da Alice de Daniel, que acomoda a personagem no universo de fantasia de uma criança – da cidade grande? – chegando ao ambiente bucólico, interiorano, do sertão. Estar na roça é estar nos domínios da avó e de seu passado de professora militante, sonhadora de um mundo menos desigual. “Não tem mais jeito, espalhou nos ossos”, diz a preposta da casa ao relatar o quadro de Indira para Cecília, filha da ex-professora e mãe de Alice. Avó, mãe e filha – nordestinas, negras, mulheres. Sertanejas. A representação de gênero, tangente temática que circunda todo o filme, avança sua presença na ficha técnica, com numerosos e importantes créditos femininos.

Perfiladas as três gerações, o enredo nos leva para dentro da fabulação onde Alice acaba entrando – ouvindo a contação da irmã ou atravessando o jardim de cactos, pouco importa. Muito mais não se adianta por aqui. A trama é de uma previsibilidade corajosa. À medida em que a menina mergulha em uma versão sertaneja da história de Carroll, vemos os personagens que acompanham a Alice original transformados em outros animais ou seres – calango, sanfoneiro, um bode “preto apressado” que Fernando Alves Pinto faz na medida, o sanfoneiro maluco e o sábio tupinambá, interpretado pelo Pajé Aripuanã, em substituição ao icônico gato de Alice.

As cangacistas são três guerreiras que irão ajudar a menina na luta contra o coronel. O vilão quer a reintegração de posse das terras da comunidade para a construção de uma usina hidrelétrica. Essas guerreiras funcionam como um dispositivo e tanto, jogando frescor no mito do cangaço, que surge ora em um quadro na parede ora nas reminiscências da avó. Indira é uma professora rural aposentada que pensa que não se aposentou. É no resgate de seu passado de militância, que nos chega suave na fatura da narrativa, sem pesar no panfleto, que a neta inflama seu heroísmo ingênuo na peleja contra o mal.

Realidade ou ficção, a bravura de Alice quer deixar uma lição de verdade ao espectador. No fluxo linear e transparente de sua fábula, o longa banca a proposta de entreter sob a chave de um encanto como arma e escudo para eventuais agruras de qualquer reino. A linguagem segue a todo tempo no andamento clássico e, combinado à fé na personagem, abre o firme pavimento de uma representação capaz de retirar da obviedade os clichês de que lança mão.

A sutileza e cuidado para tratar de coisas da infância ensejam uma utopia guerreira amorosa, que faz crer em um “bom combate” não afiançado pelo dogma cristão. Aliás, a herança colonial, sempre na sutileza, também não pára em pé segundo o filtro de “Alice dos Anjos”. Como uma espécie de Bacurau “do bem”, o filme reescreve o lema de Che Guevara com a ternura no começo da sentença. Delicado e clássico? Muita gente vê problema nisso aí.

E se destacarmos ainda as doces composições que o músico João Omar preparou para o longa? As canções são entoadas pelo elenco; mais que ilustrativas, encaminham plots, definem atmosferas, arrematam cenas, subjetivam personagens e situações. Tudo na mais clara transparência mesmo quando os intérpretes não são tão felizes ao soltar a voz nesse quase musical. Se a tal da distopia grassa há tempos, qual deve ser o compromisso dos filmes dessa seleção? “Alice”, dentro de aparente quietude, apresenta uma resposta convincente ao dilema contemporâneo.

Engajamento sisudo, cacoete Globo, ritmo arrastado, militância burocrática, malhação experimental sem pé nem cabeça. Daniel parece ter usado uma pinça para desbastar o seu trabalho dos possíveis excessos da concorrência, mesmo flertando, ou mais que isso, com alguns desses perigos. E é justamente esse três-por-quatro por demais bem aparado que pode lhe fechar as portas de alguns crivos.

O seu “Alice” é irritantemente fofo, tornando-se uma possível presa fácil do pegar ou largar de menor valia no varejo das cotações de críticos e festivais. Para o público, o engajamento costuma ser outro. Passa por um território de afeição que a Alice baiana demonstra dominar sem fugir à luta. Esse carisma imediato se constrói, sim, do recurso ao universo infantil posto em marcha desde o primeiro plano.

O ponto de vista da menina, adotado pela narrativa, consegue abastecer-se das inquietações principais que a trama elege e expõe de modo orgânico. O estado terminal da avó conecta a necessidade de retomada, que é sempre um lugar de lembranças, fértil território de fabulação.

E é exatamente de dentro da fábula – aliás, uma das mais universais desde a publicação em 1865 – que a Alice de 2022 salta aos olhos, ouvidos e corações. Mais bem aparada, comportada e posicionada no raccord do que a sua antecessora de 1976 que Edgard Navarro trouxe à tona no afiado curta em super-8 “Alice no Paiz da Mil Novilhas”. Novos tempos, novas estratégias. A luta continua.

*Marcos Pierry fez parte do Júri Abraccine.

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