28º Cine-PE: “Memórias de um Esclerosado”

por Tati Regis*

"Memórias de um Esclerosado" - Divulgação
“Memórias de um Esclerosado” – Divulgação

Qual o maior desejo de quem tem limitações físicas e sofre de uma doença degenerativa? Morrer? Superar as dificuldades? Viver o resto da vida se lamentando ou culpando Deus e o mundo pela condição? Viver pequenas coisas do dia-a-dia que pessoas não PCDs vivem diariamente e até com certa banalidade? O Cine-PE deste ano veio com o tema “VER, SENTIR, OUVIR”, abraçando na sua curadoria, principalmente, muitos filmes, entre curtas e longas, que dialogaram com a temática. Linguagens, abordagens, narrativas e formas diversas, chamaram atenção tanto do público quanto dos jurados. Dentre os filmes, um que passou na primeira noite da mostra competitiva de longas me chamou muito a atenção e mexeu de forma intensa comigo. Bom, aparentemente não só comigo, afinal “Memórias de um Esclerosado”, de Thais Fernandes e Rafael Correa, foi o escolhido como grande campeão do festival pelo júri oficial. Merecido. 

Documentários, de forma geral, tendem a ter uma abordagem muito específica e pragmática do tema, assim como uma objetividade que não adentra na ficção ou de certa maneira, em uma fantasia. Thais e Rafael optam pela quebra dessa expectativa do gênero, contando a trajetória do cartunista desde que foi diagnosticado com esclerose múltipla em 2010. Entre desenhos do próprio Rafael, que já tinha uma série chamada “Memórias de um Esclerosado”, arquivos de gravações, rotina de exames e casa e uma certa persona que mistura fantasia e realidade a partir de um trauma de Rafael, a narrativa se constrói de forma muito íntima, bela, leve e bem humorada. Inclusive, já na apresentação do filme, a equipe, super simpática, avisa que podemos rir sem culpa. 

O ponto de ruptura e surpresa no documentário de Thais e Rafael surge com um sapo antropomórfico que ocasionalmente aparece na tela para assombrar o cartunista. Essa figura deriva de uma travessura que ele fez na infância, quando esmagou a cabeça de um sapo com uma pedra. Desde então, Rafael cresceu com a sombra dessa lembrança: “Isso realmente aconteceu ou é fruto da minha imaginação?”, questionava-se. A presença recorrente do sapo no filme obrigava o cartunista a interagir com essa figura e a atuar, alternando entre medo, dúvida e incredulidade diante do que via. Essa atuação rendeu a Rafael o prêmio de melhor ator coadjuvante no festival, mesmo sendo o protagonista dessa jornada. 

A vida presente de Rafael logo se mistura aos arquivos de imagens de seu passado, ainda quando levava uma vida sem tantas restrições e limitações. A narrativa não linear, desempenha também um papel fundamental na quebra do que se espera de um documentário, mas ainda temos outro ponto importante na trama: a inserção de animações com desenhos feitos pelo próprio cartunista de sua série “Memórias de um Esclerosado” nos ajuda a entender todo o processo desde os primeiros sintomas, os primeiros espasmos, as primeiras quedas e as primeiras perdas de movimento. Tudo isso é mesclado com uma câmera voyeur que dá tanto uma visão macro da situação como fez Hitchcock em “Janela Indiscreta”, quanto uma visão íntima em close-up, focando na intimidade e expressões do personagem e ficando impossível não criar uma conexão sentimental com ele. É uma brincadeira interessante com perspectivas, mais um ponto a favor desse doc que vai ficando cada vez mais envolvente. Outro ponto crucial é a trilha sonora que é aplicada de forma muito assertiva a depender do momento da história, tal como a direção de luz e sombra que tem seu uso mais marcante no ato final super delicado e mais emocionante do filme.

Mesmo não sendo baseado em discursos de superação, há momentos em que Rafa confessa seus instantes de fraqueza e egoísmo quando se pergunta “por que eu?”. A tal “brincadeira” com o sapo na infância, vira motivo até de um possível karma, diz ele. Acho normal esses sentimentos, ele não faz disso um peso constante e ainda assim trata esses momentos com bom humor e a leveza do texto no doc é bem presente.

Aliás, o bom humor permeou outro curta da noite que também abordou PCDs em um outro excelente exercício de linguagens, forma e conteúdo. “Zagêro”, de Victor Di Marco e Márcio Picoli, igualmente a “Memórias”, vem do Rio Grande do Sul e também foi destaque no festival ganhando vários prêmios. Os dois formaram o diálogo perfeito no que tange o sentir, ver e ouvir e, mesmo que por 15 ou 75 minutos, fizeram o espectador ali presente no Teatro do Parque, se transpor para o mundo de dificuldades, capacitismo e acessibilidade, ou a falta dela como bem discursado por Ma Villa Real quando subiu ao palco para receber o prêmio de Melhor Fotografia pelo curta “Zagêro”. Ma, que, além de fotógrafa, também está como co-roteirista em “Memórias”, enfatiza que a inclusão é um direito de todos. Tanto o longa quanto o curta que Villa Real fez parte, parte da crítica a uma estrutura de pensamento social que PCDs enfrentam diariamente, até em um festival que fez questão de abraçar e abordar tantas deficiências em sua programação. 

Estar no Cine0PE como jurada convidada pela Abraccine foi uma experiência extremamente enriquecedora. Este festival, que contribuiu significativamente para a minha formação e bagagem como cinéfila no início dos anos 2000, tem um lugar especial em minha trajetória. Além disso, para nós, que moramos em Recife, onde a relação com o cinema, especialmente o cinema de rua, é muito particular, testemunhar o movimento e a interação do público com o Teatro do Parque e a programação é revigorante. E mais, observar o amadurecimento do festival como um espaço de formação e de escuta amplia ainda mais o impacto da arte.

*Tati Regis fez parte do Júri Abraccine.

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