19ª CineBH | Una casa con dos perros

Por Natália Bocanera*

O Pântano, de Lucrécia Martel, coloca o tempo em suspensão a partir de elementos que transmitem à atmosfera fílmica o efeito de letargia, que parece fazer com que os personagens permaneçam num estado de estagnação. A sensação é intensificada pelo calor, pela embriaguez, pelo entorpecimento, pela umidade, pelos sons, pelo ambiente aprisionador de uma residência escura e que não acolhe. Ao lado do tempo suspenso, pende o tom de ameaça, de perigo iminente: nada avança, exceto a tragédia.

É certo que Matías Ferreyra não é Lucrécia Martel. No entanto, em Una casa con dos perros, longa argentino em competição na Mostra Território do 19º CineBH, respira-se a obra máxima de Martel não só na construção de uma atmosfera semelhante, mas também de ambientes cuja habilidade de representação sensorial possui um efeito tridimensional: o odor é tão intensamente retratado em imagem e texto que quase o sentimos. A casa do título pertence à excêntrica avó “La Tati”, para onde a família do garotinho Manuel se muda, durante o período de crise econômica da Argentina de 2001. Ele, seus pais e irmãos passam a dividir morada com a avó e o tio, e divergências de temperamento e modos de viver, bem como a limitação física dos espaços, inicia uma disputa não-dita por território.

O espaço que abrigava dois passa a abrigar sete. Tudo é pequeno, bagunçado, sujo, quente, mofado e mal-cheiroso. O alívio para o calor é uma caixa d’água situada no quintal bagunçado. Moscas e elementos estranhos são encontrados na comida, armazenada numa geladeira velha que faz os personagens torcerem o nariz – cheira à podridão, como cada canto dali. O banheiro é um só para todos, e os novos moradores não ousam usar as toalhas da casa da avó em razão de sua higiene notoriamente duvidosa. Evidenciando ainda mais suas inspirações em Martel, o diretor não abre mão de inserir a presença do ventilador em constante, mas trôpego movimento, que apenas parece espalhar o ar quente ao invés de refrescar ou arejar os recintos.

Tal qual em O Pântano, Una casa con dos perros faz, portanto, da direção de arte e do trabalho de som, peças importantes na construção do perene tom de alerta. Ferreyra imprime na piscina e no som de trovões que ocupa sutilmente a diegese de fundo a mensagem de existência de um perigo iminente. O calor faz os personagens buscarem refresco no tanque d’água, disposto no quintal de objetos acumulados, e é angustiante quando as crianças são deixadas sozinhas pelos pais enquanto brincam numa disputa onde ganha quem fica mais tempo embaixo d’água. Emulando certa negligência paterna, a câmera abandona as crianças na piscina exatamente quando mergulham, o que amplia a inquietação. No mais, o diretor vai inserir outro elemento que faz direta referência à Martel: a presença de uma escada, à disposição para o subir e descer das crianças, especialmente, de Manuel – atividades banais da rotina tornam-se, assim, sobremaneira ameaçadoras pela construção da atmosfera como um todo.

Em meio ao caos, é contraditório que La Tati seja, justamente, certo ponto de luz, já que seria ela a causa da desordem. A avó parece ser a única a se voltar, de fato, para o neto Manuel, abandonado naquele novo contexto de lar, e os dois vão desenvolver uma cumplicidade silenciosa, pautada pela troca de olhares. Nesse abrigo em ruínas que é representado pela família e pela casa, onde prevalece uma heteronormatividade hipócrita e um machismo explícito, Manuel, que passa por um processo de descoberta tanto interno como externo, encontra acolhimento na excentricidade da matriarca. Ambos sentem o peso do não-pertencimento e o compartilham: o menino, porque gosta de vestir roupas femininas, e a avó, por estar sendo expulsa, gradativamente, de sua própria casa.

Mas e os dois cachorros? Ao passo que paira o boato de que há uma mulher matando cachorros, La Tati, tida por bruxa, nega ser tutora de qualquer animal. Enquanto isso, um cão está ali, morto no quintal. Ou ainda, é abandonado na estrada, na forma de uma criança. E por fim, é provável que nem exista. Una casa con dos perros, que não esconde trabalhar com metáforas, carrega na figura dos cachorros o sinônimo do próprio abandono. Nesse contexto, Manuel e La Tati são, de fato, os animaizinhos, desassistidos naquele lar que respira por aparelhos.

*Crítica convidada, Natália Bocanera integrou o Júri Abraccine da 19º Mostra CineBH.

2 comentários sobre “19ª CineBH | Una casa con dos perros

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