Carlos Helí de Almeida *
Aos 78 anos, Paul Verhoeven está de volta aos holofotes e, claro, à polêmica. O motivo da agitação é “Elle”, thriller que vem causando sensação desde sua primeira exibição no Festival de Cannes, em maio. Recheado de violência sexual, situações perversas e diálogos ácidos, o filme devolve o diretor holandês aos bons tempos de “Instinto selvagem” (1992), que consagrou Sharon Stone. Protagonizado por Isabelle Huppert, o novo longa ganha projeções na 40ª Mostra de São Paulo, que começa nesta quarta-feira, antes de entrar em circuito, no dia 17 de novembro. Em ano de aniversário, a maratona paulista também homenageará Verhoeven exibindo o thriller erótico “O quarto homem” (1983), sua última produção holandesa antes de começar carreira em Hollywood.
Adaptação do romance “Oh…”, do francês Philippe Djian, “Elle” é centrado na figura de uma executiva de espírito implacável (Isabelle), que reage de forma inesperada depois de ser estuprada em casa por um homem com uma máscara de esqui: em vez de denunciar o crime à polícia, ela tenta descobrir a identidade do criminoso e se aproximar dele. A complexidade da personagem, o tom satírico do enredo e o contexto de violência social em que o filme foi lançado transformaram “Elle” em um dos títulos aguardados da temporada. E pensar que por pouco não foi feito com equipe e elenco americano nos EUA, onde Verhoeven rodou sucessos comerciais como “Robocop — O policial do futuro” (1987) e “O vingador do futuro” (1990).
— Felizmente, agora posso dizer isso, as atrizes que os produtores procuraram recusaram o papel. Porque hoje vejo claramente que esse filme só poderia ser feito na Europa, e com Isabelle. Caso contrário, seria totalmente diferente. Provavelmente, um grande fracasso — desabafa Verhoeven, em entrevista por telefone.
O senhor vinha sendo assediado por Hollywood desde o sucesso de “Soldado de laranja” (1977). Por que demorou tanto a fazer filmes nos Estados Unidos?
Nunca tive vontade de trabalhar em Hollywood, não via aquilo lá como o paraíso. Para mim, os EUA foram apenas uma rota de fuga porque, na época, havia ficado impossível trabalhar na Holanda. Os comitês de financiamento não queriam mais me dar dinheiro porque achavam meus filmes violentos, pervertidos, coisas assim.
Sentiu-se à vontade em Hollywood?
A mudança deu certo, mas, depois de “Robocop”, só pude fazer um tipo de filme e fiquei rotulado como diretor de ficção científica.
Acha “Instinto selvagem” um reencontro com o autor de histórias “decadentes e pervertidas”, como “O quarto homem”?
As pessoas enxergam um paralelo entre os dois, e talvez seja verdade, porque falam de paranoia, sexualidade. Mas “O quarto homem” foi o único trabalho meu no território chamado de filme de arte, ou seja, voltado para um público intelectualizado. “Instinto selvagem” é um thriller mais puro, para o grande público. Podemos dizer que é uma versão secular de “O quarto homem” (risos).
“Elle” também tem sexo e paranoia. Vê um paralelo entre eles?
O elemento comum óbvio é o thriller. “Instinto selvagem” vai revelando detalhes sobre os personagens à medida que a história pede. Em “Elle”, há um estupro e a tentativa de identificar o criminoso, mas 70% do filme é sobre as relações sociais da protagonista, com a mãe, o pai, a filha, os funcionários, o ex-marido. Há temas de contato entre os dois filmes, mas o ambiente social de “Elle” é mais dominante do que em “Instinto selvagem”, no qual a protagonista não está nem aí para questões morais. Ela é basicamente uma louca (risos).
A relação ambígua de Michèle, a personagem de Isabelle Huppert, com o seu agressor tem sido motivo de fascínio e estranheza…
Ela não o denuncia e começa uma relação sexual, digamos, sadomasoquista com ele, o que é certamente incomum. A reação dela, de aceitar de alguma forma o homem que a agrediu, não é o que as pessoas esperam. Mas a própria Isabelle disse que vê o filme como um conto de fadas sombrio.
Consegue entender a razão de atrizes americanas terem recusado o papel?
Não conversei diretamente com elas, mas acho que foi o fato de nos recursarmos a fazer um filme de vingança. Michèle estende a mão ao agressor. É um filme que diz “ame seu inimigo”, como ensinou Jesus. O interessante é que, embora os EUA sejam uma nação muito cristã, nenhuma atriz de lá reconheceu esse ato cristão na trama.
Desde a estreia em Cannes, “Elle” tem sido aclamado em vários festivais. A imprensa fala de um promissor retorno de Verhoeven depois de um hiato de dez anos. O que acha disso?
Disseram o mesmo à época de “A espiã” (2006), meu primeiro filme holandês em décadas. Entre os dois longas, escrevi um livro sobre Jesus e outro sobre filmes antigos enquanto não encontrava um projeto decente. Continuavam a oferecer filmes de ficção científica ou de ação. Já havia feito quatro deles no passado. Essa impressão de recomeço vem dessa busca por algo assustador, que me deixe na ponta dos pés. Para mim, fazer um filme é começar uma nova aventura, e “Elle” foi assim.
O senhor fala como se não sentisse falta da fase em que reinou fazendo ficção científica.
Você está certo. Mas não por sentir antipatia pelos filmes do gênero que fiz. O problema é que é difícil encontrar algo inovador na ficção científica depois de tudo o que foi feito nessa área nos últimos 20 anos. Quando chegamos ao ponto de fazer algo como “Batman vs Superman”, por exemplo, é porque o filão sobre heróis se esgotou. Certamente faria um filme desses caso percebesse algum tipo de inovação, mas acho que não verei por algum tempo. Claro que o gênero pode voltar, renovado. Ele atingiu seu auge nos anos 1950, antes de desaparecer, e voltou com “Guerra nas estrelas”, e agora tende a desaparecer porque tudo já foi explorado.
Mas o senhor deixou sua marca na ficção científica. Alguns de seus filmes ganharam remakes. O que achou deles?
Vi todos eles. Vi até “Instinto selvagem 2”, que não é do mesmo gênero, embora ainda ache que a personagem de Sharon Stone seja uma ficção científica (risos). Mas nenhum funciona. Não estou dizendo que sejam filmes ruins, apenas que não havia necessidade de refazê-los.
É um problema do gênero?
Tenho a impressão de que as decisões artísticas, particularmente nos estúdios, em geral, estão extremamente limitadas. Estão evitando ao máximo os riscos. Recentemente, lançaram um remake de “Beh-Hur”, e pensei : “Como alguém acha que pode fazer melhor do que já existe?”. Esperava que fossem buscar um ângulo diferente, o que certamente não foi o caso.
Vê com pessimismo o cinema americano?
Ainda há coisas boas sendo feitas. “A grande aposta” (de Adam McKay), por exemplo, deveria ter ganhado o Oscar. Mas deram para “Spotlight: segredos revelados” (de Tom McCarthy). “A grande aposta” é cinema de verdade; “Spotlight” é televisão. Ainda é difícil, para a indústria, reconhecer o que é ousado. Daí a predominância de refilmagens, sinal de falta de audácia.
* crítico de cinema; texto originalmente publicado no jornal O Globo.