Ivonete Pinto *
A 22ª edição do Festival É Tudo Verdade reflete bem esta tendência do cinema documental de voltar-se às reminiscências pessoais. Títulos como A Lembrança que Eu Gosto de Ter (2017), Perón, Meu Pai e Eu (2017), Eu, Meu Pai e Os Cariocas (2017) rechearam a programação com outros filmes menos umbilicais, mas que, narrados na primeira pessoa, foram buscar na própria família o protagonismo da história, como o brasileiro No Intenso Agora (2017) e o letão-ucraniano Relações Próximas (2016).
Quem é Primavera das Neves (2017), de Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo, tem como ponto de partida uma curiosidade pessoal: Furtado, um leitor aplicado, daqueles que se interessam em saber quem são os tradutores dos livros que lê, cismou em descobrir quem era aquela mulher de nome peculiar que traduziu autores tão diferentes quanto Flaubert, Nabokov e Lewis Carroll, tendo vertido cerca de 80 livros para o português. A primeira busca do diretor, naturalmente, se deu nos domínios da internet, onde havia somente um link sobre ela. O que o deixou mais curioso ainda. Estes primeiros passos são narrados por Furtado num registro ainda bastante pessoal, mas aos poucos uma opção low-profile o vai deixando em segundo plano e Primavera das Neves ganha corpo através da memória de duas melhores amigas e, mais adiante, do ex-marido. São apenas três entrevistados durante o filme todo, demonstrando que não é preciso mais do que isto para revelar um grande personagem.
Os detalhes sobre o nome estranho ̶ na verdade Primavera Ácrata Saiz das Neves ̶ , de como ela, portuguesa, veio parar na Brasil ainda criança, como se interessou pelas línguas (falava várias), como se divertia com as amigas, como conheceu o marido, como eram suas poesias e como voltou para Portugal vão surgindo numa narrativa fluída e discreta; sem contudo deixar de aflorar o imenso carinho com que os personagens retém Primavera na lembrança (é tocante a amizade com Eulalie Ligneul, primeira fonte de Furtado) e sem esconder a crescente admiração dos realizadores por ela. O espanto das descobertas que revelam uma mulher totalmente incomum, com uma história rocambolesca até (a militância do marido contra Salazar, a prisão, o destino da filha, a volta para Portugal e o retorno ao Brasil), é ao mesmo tempo o espanto de quem fez o filme e de quem o assiste. Naturalmente, acompanhar entrevistas e sessões comentadas, como a que aconteceu no É Tudo Verdade, nos dão mais elementos para compreender Primavera e para perceber que esta figura daria um romance, uma série, outros longas. Contudo, é um filme que se basta, uma pequena pérola. Pérola que deve estrear já em junho e que por conta do empenho da produtora Nora Goulart, na sequência vai ser exibido na Globo News (como o gaúcho que venceu o É Tudo Verdade, Cidades Fantasmas, de Tyrell Spencer, este também produzido pela Casa de Cinema em coprodução com o canal de notícias).
É curioso como Jorge Furtado acerta mais quando seus projetos são pequenos, em tamanho de produção e ambição intelectual. Com o primeiro longa, Houve uma Vez Dois Verões (2002) e com o curta Barbosa (1988) aconteceu o mesmo (Ilha das Flores, de 1989, segue como avis rara em sua trajetória e na história do cinema brasileiro). Barbosa, só para lembrar, também é assinado por ele em parceria com a colega da Casa de Cinema, Ana Azevedo, e também se dedica a iluminar um personagem – ou um instante de um personagem ̶ na fatídica Copa de 50.
Quem é Primavera das Neves, que dispensa o ponto de interrogação pois a pergunta está implícita, entra para o currículo de Furtado como contribuição à memória de uma mulher singular e à memória de uma época marcante. Memória, por sinal, é palavra-chave para entrar neste filme, cujo convite é feito na tela com a projeção de uma moldura. Todo o campo, já emoldurado pelo contorno da tela, conta com a ilustração de uma moldura de foto antiga. O que contribui para uma adesão voyeurística, mas também afetiva com o material filmado, até porque nós espectadores nos descobrimos também leitores de Primavera. Quem com mais de 40 ou 50 anos nunca leu “Enterrada Viva”, a biografia de Janes Joplin? Escrita por Myra Friedman, a tradução da Civilização Brasileira (1974) é assinada por “Vera Neves Pedroso” forma adotada em certa época por Primavera. Este nome estava lá, e em tantos outros livros, sem que ninguém quisesse saber quem foi, o que fez, qual sua história. A figura dos tradutores é, salvo exceções como a de Antônio Houaiss para James Joyce, por essência, anônima mesmo, e em geral não rende filmes. Furtado teve o insight dos cientistas e sua busca pode não mudar o cinema, nem o mundo discreto dos tradutores, mas emociona qualquer espectador que valoriza as pequenas surpresas.
Um registro final ainda é necessário. Aliás, dois. O trabalho do montador Giba Assis Brasil, companheiro há décadas dos diretores, certamente é determinante para a citada fluidez do filme. É possível supor que a base autoral de Quem é Primavera das Neves esteja em um tripé envolvendo os dois diretores e o montador. Outro registro é a presença de Mariana Lima lendo cartas e poemas de Primavera, trechos de traduções e por vezes conversando com Furtado. O tom delicado e perspicaz da leitura, aliado à fisionomia semelhante com a “biografada” provocam uma espécie de imersão íntima do espectador no filme. Um ponto a mais. Aliás, dois.
* Ivonete Pinto é Doutora em Cinema pela USP, docente no curso de Cinema e Audiovisual da UFPel, editora da Revista Teorema. Texto originalmente publicado no site Calvero