
*Lorenna Montenegro
Anfíbias, míticas, as salamandras estão no calor dos corpos. Curiosidade, seguida de cobiça, foi o primeiro atrativo de Catherine (Marina Fois) em relação a Gil (Maicon Rodrigues). Acolhida pela irmã Aude (vivida por Anna Mouglalis, de L’événement), ela resolve recomeçar em Pernambuco após o luto vivido na França. Conhece Gil, existe uma atração e um mergulho num turbilhão de sensações. Salamandra é o primeiro longa de Alex Carvalho, que fez sua estreia mundial em Veneza e no Brasil, na Mostra Internacional de São Paulo de 2021.
A base do filme de Carvalho é um romance best seller, de autoria de Jean-Christophe Rufin, que foi adido cultural no Recife e traz um olhar especialmente viciado sobre a relação amorosa entre uma turista francesa e um gigolô pernambucano. Sobre o livro, não interessa discorrer, mas vale sim pontuar que o filme reforça em sequência sobre sequência o preconceito de classe e racial – Gil está sempre na condição de passatempo sexual e guia de Catherine, que busca cura mergulhando num novo torpor. Mas a forma que Carvalho e sua equipe tecem as tramas da narrativa, não deixam transparecer o drama pesaroso e sensual da personagem que conduz e é a Salamandra. Tudo fica monotemático, calculado e demais datado.
Há pouco espaço para que Fois, que é uma atriz experimentada, crie matizes e troque a pele de sua Catherine. Outras atrizes como Mouglalis e Suzy Lopes estão subaproveitadas; Maicon Rodrigues é quem consegue com pouco, ainda entregar algo que atraia a atenção. Gil é um jovem e belo homem, pobre, preto retinto, atraente e sonhador. A tal da intimidade decorrente do encontro entre os amantes, que criam uma linguagem própria para se compreenderem – afinal ele não fala francês e ela pouco entende o português – não se traduz na narrativa do filme. A sensação é que mesmo sendo de autoria de um brasileiro, o olhar estrangeiro dá a tônica de Salamandra (que é uma co-produção entre Brasil, França e Alemanha).
Um lamento pelo que viveu mas sem remorsos pelo lugar onde suas vontades a deixaram naufragada, Catherine irremediavelmente é enganada pelo namorado brasileiro. Nada de novo sob o sol, nem uma tentativa de soterrar velhos cismas da nossa sociedade e do nosso cinema.
Causou repulsa na equipe do filme, em sua maioria nas mulheres, a cena prevista no script onde a personagem de Catherine ateava fogo ao próprio corpo durante uma cena de masturbação. Houve paralisação no set e a versão que foi filmada e que chega às exibições traz a mulher tendo um desfecho ainda trágico, mesmo que o diretor tenha por bem atenuado a questão, mostrando Catherine provocando um incêndio no quarto de Maicon e encerrando o filme com ela olhando as marcas de queimaduras e indo embora – provavelmente regressando para a França. Mas que filme é esse?
Se melhor fosse um curta para não ser tão hesitante como corpo fílmico ou estudo de personagem, difícil saber. Se sua gestação tivesse sido mais longa, estudada, que até uma roteirista tivesse sido convidada a colaborar no roteiro – Rita Toledo é mencionada como colaboradora mas não creditada como co-roteirista poderia ser o filme sobre a mulher buscando um recomeço, uma nova rota ao sair da sombra do pai e que se vê consumida por uma paixão, com toda a carga de imprudência e liberdade necessárias para a combustão. Porque na prática, talvez seja apenas na última cena, no último momento, quando Catherine olha para si, toca seu corpo queimado, lambido pelas chamas, que Salamandra adquire sentido em existir.
*Lorenna Montenegro foi júri Abraccine