33º Cine Ceará | O olhar feminino e a efetiva representatividade da mulher

por Lilianna Bernartt*

Festivais de cinema são momentos privilegiados, que proporcionam o encontro com uma pluralidade de pensamento e de produção por vezes exclusivo, já que o acesso posterior ao material exibido nem sempre é garantido, por inúmeras razões.

Ultimamente, tem-se buscado por uma mudança nas narrativas, ressignificadas por novos olhares, antes oprimidos pela supremacia patriarcal. Neste sentido, chama atenção o filme exibido na noite de segunda-feira, dia 27 de novembro, no 33º Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema, no que diz respeito ao olhar sobre a mulher no cinema e sua efetiva representatividade: o longa “Agora Cai a Luz Vertical”,
dirigido pela cineasta grega Efthymia Zymvragaki.

Divulgação

Ernesto, um homem violento que assume ter espancado diversas mulheres, é colocado em foco pela diretora, que traça um paralelo da violência praticada por seu protagonista, com a violência sofrida por ela mesma. A diretora se coloca como narradora e, através dos gatilhos proporcionados por seu protagonista, reverbera de forma poética suas análises íntimas. Desta forma, temos um contraponto crítico (ou pelo menos essa seria a proposta) entre a violência em seu estado primitivo versus a digestão/superação da mesma.

A análise enfática e contraditória do parágrafo anterior reverbera o sentimento causado pelo longa-metragem.

Ernesto, um homem extrema e assumidamente violento, procurou diversas cineastas — mulheres — para que retratassem sua história. Muitas não aceitaram. Efthymia, também vítima de violência, interessou-se pelo desafio. A diretora se presentifica reiteradamente durante o filme: se coloca em primeira pessoa como entrevistadora; como sujeito enquanto narradora e enquanto filtro analítico e questionador dos fatos. Entretanto, infelizmente, o protagonismo acaba sendo de Ernesto.

A partir de questionamentos da diretora, a mesma coloca Ernesto falando de si, sobre seus abusos e sobre seus sentimentos antes, durante e após os fatos narrados.

No debate sobre o filme, questionada acerca de sua proposta e quanto aos perigos da abertura de um espaço de fala a um abusador, a diretora justificou dizendo que ela mesma não confiava no objeto de seu estudo e que o escutava com certo afastamento, fazendo-o acreditar que estava contando sua história do jeito que queria, mas sem o colocar como protagonista, mantendo desta forma, o controle crítico da narrativa.

Ocorre que a horizontalidade e afastamento da diretora com o objeto de sua pesquisa e com o assunto em si, pelo menos no que diz respeito a narrativa de Ernesto, acaba por gerar justamente o espaço de protagonista pretendido pelo mesmo.

A diretora expõe a violência de Ernesto sem direcionar sua crítica e quando o faz, o faz de forma poética e ineficaz. Desta forma, temos um filme que paira em ideias que não se concretizam — a não ser a de Ernesto que, ainda que não tenha sido retratado da forma como pensou (ou não, impossível fazer qualquer afirmação), tem seu espaço de fala disponível, no qual a violência é normalizada a partir do reconhecimento do ato como tal, tratada como “condição comportamental”. A diretora abre espaço para o reforço de tal narrativa ao mostrar o depoimento da então atual companheira de Ernesto, que diz algo como “eu sei como ele funciona e quando ele fica nervoso, eu me retiro”.

Para piorar, em determinado momento do filme, é realizada a reconstituição da violência praticada por Ernesto, com a utilização de um ator e de uma atriz, que interpretam, respectivamente, Ernesto e a mulher abusada por ele. Neste momento, Ernesto se coroa como protagonista da história, chegando até mesmo a tomar o lugar do ator no ensaio para demonstrar como ele tinha feito e o que ele estava sentindo no momento.

Há quem possa considerar que a discussão se baste pela propositura da pauta, o que por si, geraria a repulsa como forma de crítica. Entretanto, até mesmo para que haja esse discernimento, o caminho tem de ser construído de forma direcional. Não há mais como normalizarmos narrativas abstêmicas em tempos de importantes mudanças globais.

A construção de uma narrativa sobre questões abusivas é muito frágil, podendo facilmente se contradizer, principalmente quando abordada sob uma perspectiva pessoal e íntima, como é o caso da diretora. Independente da pessoalidade do tema abordado, questões como essa devem sempre buscar o macro, seja pela identificação ou pela repulsa.

A exibição do filme, juntamente com o debate pós sessão, leva ao questionamento quanto à existência ou não de limite para representação/reprodução cinematográfica? Se sim, qual o parâmetro desta balança?

Fica o questionamento, porque, no que se refere à certeza, esta só recai sobre a necessidade da constante manutenção de nosso olhar — como realizadores e como espectadores — em prol da busca pelo limiar entre a criação de novas narrativas, livres, sem que haja, contudo, o reforço e a perpetuação de pensamentos hegemônicos e retrógrados.

*Lilianna Bernartt fez parte do Júri Abraccine.

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